O ator Cédric Kahn consagrou-se definitivamente como um realizador de inquietudes autorais ao abrir a Quinzena de Cineastas, em 2023, com o estonteante thriller de tribunal «O Processo Goldman». Relembramos que Cédric Kahn, a par da sua carreira de interpretação, já conta 16 filmes no currículo como realizador, iniciou o seu percurso nas lides da realização em 1990 com a curta «Les Dernières Heures du Millénaire».
«O Processo Goldman» é o exercício cinematográfico mais ousado da sua obra como cineasta, e é o que mais (e melhor) conversa com os engramas de tradição (religiosa) de «Não Deixeis Cair Em Tentação» («La Prière»/[The Prayer]), pelo qual foi indicado ao Urso de Ouro em 2018. São olhares sobre delinquência e exclusão que gravitam o âmbito de uma identidade de fé. No filme de culto da década passada, tratava-se de um grupo de perseverança católica para jovens. No seu exercício narrativo pelas cartilhas do suspense, a marca identitária em questão é o judaísmo.
Aprendiz da edição na equipa de montagem de «Ao Sol de Satanás» [Under The Sun of Satan] (a Palma de Ouro de 1987), Kahn gosta de filmar histórias sob desconjunções numa França feroz a quem sai fora dos padrões normativos. «O Processo Goldman» é uma trama jurídica que parece um filme de Costa-Gavras de antigamente, ao nível de «Z – A Orgia do Poder» [«Z»] (1969) ou «Estado de Sítio» [«State of Siege»] (1972), mas feito hoje, com foco na intolerância. Parte de uma direção nervosa, que faz da narrativa uma panela de pressão. A forma com que o guião – escrito por Kahn e por Nathalie Hertzberg – fala de racismo, a partir de práticas estatais antissemitas, é uma abordagem mais do que necessária (e urgente) da exclusão. Aliás, diante do que se passou e do que se passa no recrudescimento da guerra em Israel, a produção se faz ver com outros (e mais urgentes) olhos geopolíticos.
O seu argumento faz parte de uma releitura do julgamento de Pierre Goldman (1944-1979), autor do livro “Souvenirs obscurs d’un Juif polonais né en France”. Nele, Kahn recria a luta feroz de Goldman para provar que não matou duas pessoas num roubo a uma farmácia que lhe foi imputado. O espectador viaja até ao ano de 1976, centrados na corte do processo jurídico de Pierre Goldman, que se descortina diante de nós numa secura extrema, numa abordagem de realismo extremo. O desempenho de Ariah Worthalter no papel principal, em estouros de raiva, humaniza a longa-metragem.
O maior acerto de Kahn é mostrar o ódio da polícia francesa em relação a Goldman, que após ter cometido dois roubos, foi acusado de ser um assassino sem evidências fortes. O fato de ele ser judeu fez dele objeto de tipificação e violência. Por se tratar de um episódio histórico retórico, o cineasta procurar concentrar a narrativa na força da palavra, deixando os diálogos guiarem a forma com que a câmara regista indignações e perplexidades.
Título original: Le procès Goldman Título internacional: The Goldman Case Realização: Cédric Kahn Elenco: Arieh Worthalter, Arthur Harari, Stéphan Guérin-Tillié Duração: 115 min. França, 2023
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº102, Janeiro 2024]
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