É preciso dizê-lo de forma clara: «Bowling Saturn» é um thriller sombrio sobre a masculinidade tóxica e o patriarcado que a sustenta, mas acima de tudo, é um retrato da violência, que aqui se mostra como uma viscosidade penetrante, uma doença, não venérea, mas hereditária. Patricia Mazuy propõe esta visão ao representar uma pista de bowling, a herança de um caçador respeitado ao seu filho Guillaume (Arieh Worthalter), um polícia em ascensão na carreira. Contudo, essa vida como agente da autoridade destaca-se pela solidão e pelo desgaste, apagando nele qualquer traço social, portanto, solução encontrada foi entregar o espaço ao seu meio-irmão, Armand (Achille Reggiani), um ex-segurança consumido pela raiva e por uma frustração quase animalesca. É precisamente a partir de Armand que o filme se inicia, e desde os primeiros instantes, com o seu comportamento errático, o espectador é prontamente alertado para o que está por vir.

Voltando à pista, após alguma resistência inicial, Armand acaba por aceitar a tarefa de gerir o espaço de orgulho do pai falecido. Aqui, o bowling une-se como um misto de santuário para as angústias de homem falhado e de repositório de memórias viris, dos quais, por exemplo, um grupo de caçadores, no seu restrito clube de primitivismo sanguinário, alugam o local, exibindo vídeos das suas caçadas africanas e recordando, através de rituais que só entre eles reconhecidos, dos feitos másculos, e da fúria depravada de uma “espécie condenada e desconstruída”.

«Bowling Saturn» poderia ser, como tem sido abundante, mais um nesses ensaios de textualidades e decomposição dos códigos entre géneros, nomeadamente a do homem como outrora pintaram: seres racionais e sanguinários, acorrentados a essa maldição do cromossoma Y. Neste sentido, não é surpreendente que seja uma mulher a realizar o filme, mas o verdadeiro twist está na crueza com que Mazuy se aprofunda para captar este retrato. Ela constrói então um quadro de serial killers e de detetives encarregados de os capturar, filmando a violência daí emanada, o tabu sobre as mulheres e contra as mulheres, com uma secura longe do espectáculo gore ou da glorificação do ódio, fazendo do próprio ato uma imagem a deslizar para a objetividade. A perspetiva, quem sabe, está naquele cão, criatura prisioneira de um ambiente de sexualidade frustrada e ferida. A brutalidade é apresentada sem a tentativa de adotar a visão do predador ou da presa, mas sim de uma testemunha — e talvez seja por isso que estas imagens nos atormentam.

Se existe um filme próximo a «Bowling Saturn», esse será «Henry: Retrato de um Assassino», de John McNaughton: destituído de empatia pelo vilão/protagonista, sem esperança de redenção, e aqui, com a fotografia de Simon Beaufils («Coração Aberto») a assaltar-nos a sensibilidade, convocando-nos de forma confortável para a violência que representa. Uma oposição aos nossos sentidos (e sem a necessidade de sádicos e gratuitos palhaços assassinos, fica a provocação). Esta é uma história de predadores, com rostos humanos e sorrisos maliciosos, que ora nos repugnam, ora nos fazem ferver o sangue. Se este último estado se manifestar, não se preocupem; Patricia Mazuy sabe bem onde tocar os nossos nervos.

A chegar às salas portuguesas, este é um dos filmes do ano.

Título original: Bowling Saturn Realização: Patricia Mazuy Elenco: Arieh Worthalter, Achille Reggiani, Y-Lan Lucas Duração: 114 min. França, Bélgica, 2022

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