“Tudo é político, até o acto de lavar os dentes é político.”, Philip Roth em American Pastoral, uma daquelas frases que me acompanham e o qual cito, sim, por conveniência, mas constantemente também para sublinhar que a crítica de cinema é tudo menos apolítica. Portanto, escusam-se os lamentos charlatões de “agora, tudo é política!” [fazer voz grossa e bronca]. É impossível distanciar-se disso, sobretudo quando falamos de «Com a Mão na Alma Caminha», da iraniana Sepideh Farsi. É um filme do presente, deste tempo, do novo, da Palestina, esse teste à Humanidade que falhamos grosseiramente. Não há aqui vanguarda estética, cinematográfica, conceptual ou sequer linguística: é na simplicidade da forma e da abordagem que a realizadora encontra o seu cinema. Encontra-o nas videochamadas com a palestiniana Fatima Hassona, jovem de 24 anos em Gaza, com paixão pela fotografia, cujo trabalho surge intermitente a interromper os diálogos. Farsi viaja pelo mundo a exibir o seu, na altura, mais recente projecto («La Sirène»); Hassona, pelo contrário, suspira por sair do seu pequeno canto devastado pelas operações-relâmpago israelitas, pelos drones, pelos barulhentos apaches. Deseja conhecer aquilo que Farsi experimenta, o “mundo lá fora”, ao invés disso, sempre munida de um sorriso, fala da sua condição, da fome, do vizinho morto, tal como toda a família dele. Mas o sorriso nunca desaparece, para desconforto da realizadora, que insiste em romper com a “normalidade” reclamada pela jovem fotógrafa. Com o tempo, percebemos: Hassona aceitou o destino, normalizou a miséria, abraçou a fome com um determinismo trágico. O que resta é esse sorriso. O que a separa dos animais, como talvez Primo Levi diria numa outra tese de “Se Isto é um Homem”: a manutenção da Humanidade, pequeno traço que seja, em confronto com a desumanidade, e talvez Adorno tivesse razão: não há tempo para poesia. Mas o sorriso… repito, porque aquele sorriso é político, é resistência. O filme encerra-se com a revelação do próprio filme: Farsi encontra, nessas conversas durante um ano, material para um documentário a solo. Submete-o a Cannes; é seleccionado para a secção ACID. Sem saber, faltava apenas uma cena, fatídica, que fecharia a obra e selaria o seu fado. A realizadora anuncia a notícia a Fatima: o sorriso dormente transforma-se em felicidade, “parabéns”. Depois o brinde: “Dá-me o teu passaporte, vens a Cannes apresentar o filme.” Euforia. Pela primeira vez sairia de Gaza. A Riviera Francesa seria o início da sua jornada pelo mundo. Mas o destino assim não quis. Na madrugada seguinte a essa conversa, Fatima e a família foram mortos por tropas israelitas que entraram pela sua casa adentro, sob a desculpa de ameaças ao Estado. A obra encerra com essa legenda. Sobem os créditos. Acendem-se as luzes. Bem-vindos de volta ao mundo exterior. Depois disto, como não ser político? Porque nós, humanos, sempre fomos animais políticos.
Título original: Put Your Soul on Your Hand and Walk Realização: Sepideh Farsi Elenco: Fatima Hassona Duração: 113 min. País: França, 2025

