À espera do filme de Pablo Larraín em que Pinochet aparece como um vampiro, numa narrativa musical de horror político, prometido para Veneza, um drama história de essência feminista alcançou notoriedade. Foi o caso de «Chile 1976», uma sensação da Quinzena dos Realizadores de Cannes em 2022.
É impossível não pensar no argentino «A História Oficial» (Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1986) diante do mergulho que o seu hermano da América do Sul, egresso do Chile, dá nas águas pantanosas do ciclo ditatorial latino das décadas de 1970 e 80. É impossível também entender por que esta joia não esteve na disputa pela Palma de Ouro, agora que Cannes vem ignorando filmes latinos sucessivamente na sua seleção oficial competitiva. Foi uma das melhores longas de todo o evento francês do ano passado. A direção é da atriz e cineasta estreante Manuela Martelli, vista em «Machuca» (2004). O olhar dela é de um existencialismo arrebatador, que se ampara na sociologia de Eduardo Galeano.
Na sua trama, uma mulher de classe média alta, Carmen (Aline Kuppenheim), tenta sastifazer o pedido de um amigo leal, o padre Sanchez (Hugo Medina), que recorre a ela devido à proteção para um jovem ferido no garrote de Pinochet. O tal rapaz, Elias (Nicolás Sepúlveda), foi baleado e requer cuidados. Ela sonhava em integrar a Cruz Vermelha, mas não teve essa chance por conta da interdição do seu pai machista. Mas, na situação que se desenha diante dela, Carmen tem a possibilidade de ser cuidadora de uma alma alquebrada pela violência política de um Estado que foi agrilhoado a um processo ditatorial. Na relação com Elias, ela vai desbravar uma outra realidade chilena. E leva-nos consigo. A maior parte das investigações históricas lida com grandes acontecimentos e, quase sempre, com eventos ligados a figuras masculinas. “Eu escolhi falar de uma data que coincide com a morte da minha avó sob uma perspectiva feminina.” É um esforço de olhar um ano sob a visão de uma mulher anónima, a notar e a assinalar de que forma a vida íntima de Carmen, a sua protagonista, numa casa, reflete esse Chile do final dos anos 1970.
Tudo no seu guião partiu da vontade de Martelli saber como é que se filtra o peso do espaço público, sob o horror de uma ditadura, no espaço privado. Não se trata de uma história sobre uma mulher isolada e, sim, de uma pessoa que tem uma sensibilidade particular e que se vê vetorizada por um pesadelo político.
Título Original: 1976 Realização: Manuela Martelli Elenco: Aline Küppenheim, Nicolás Sepúlveda, Hugo Medina Duração: 95 min. Chile/Argentina/Catar, 2022
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº95, Julho 2023]
https://www.youtube.com/watch?v=lAoV3AeV9aY