Foi um dos realizadores japoneses que mais fama e proveito retirou da interpretação criativa do património, sobretudo literário, da cultura ocidental. Por isso mesmo chegou a ser severamente criticado por alguns sectores conservadores no seu país. Estamos a falar de Akira Kurosawa (23 de Março de 1910 – 6 de Setembro de 1998) cujo epíteto de “samurai do cinema japonês” não podia ser mais redutor, embora os mentores do marketing preguiçoso pensem o contrário. Havia razões para esse alvoroço? Digamos que sim, mas no bom sentido da palavra. Recordemos a adaptação de “Macbeth”, do inglês William Shakespeare, de que resultou o monumental «Kumonosu-jō» («O Trono de Sangue»), 1957, assim como da peça “Os Bairros Miseráveis”, do russo Máximo Gorky, que no mesmo ano deu origem a «Donzoko», cuja intriga foi adaptada dos meandros da Rússia Imperial no final do Século XIX para o Japão do período Edo ou Período Tokugawa (1603-1868). Podemos ainda acrescentar a reinterpretação do romance “O Idiota”, do russo Fiódor Dostoiévsky, que o realizador levou ao grande ecrã numa obra de grande fôlego intitulada «Hakuchi» («O Idiota»), 1951. E, num período particularmente difícil da sua vida e carreira, o cineasta investiu nos relatos escritos pelo explorador da Sibéria e do Extremo-Oriente no limiar do Século XX, o russo Vladimir Arseniev, para realizar «Derzou Ouzala» («Derzu Uzala – A Águia da Estepe»), 1974, inesquecível fresco da comunhão do homem com a natureza, cujo protagonista ficou para sempre marcado pela magnífica composição do actor Maxim Mounzouk. Poderíamos dar outros exemplos para salientar a preocupação de Akira Kurosawa em não descurar referentes estrangeiros que sentia como parte da sua formação, já que nasceu no Período Meiji (1868-1912) durante o qual o Japão passou de uma sociedade organizada segundo um sistema feudal para uma nova realidade socioeconómica com incidência na política de modernização e abertura aos padrões ocidentais, sem no entanto deixar de venerar e defender a herança da sua própria identidade nacional e cultural. Numa filmografia que mergulha de forma clara e profunda no universo histórico e idiossincrático japonês, entre outras influências recebidas do exterior para o interior, notemos as do neo-realismo, as dos policiais e as dos chamados film noir. Mas, por outro lado, foi igualmente um dos cineastas mais imitados pelos seus colegas ocidentais. Muitas das suas obras de grande impacto no seu país e cuja presença se fez notar no correspondente panorama internacional motivaram remakes ou novas abordagens que ficaram para a História do cinema mundial como subsidiárias das excelentes matrizes originais: «Shichinin No Samurai» («Os Sete Samurais»), 1954 / «The Magnificent Seven» («Os Sete Magníficos»), 1960, de John Sturges. «Rashomon» («As Portas do Inferno»), 1950 / «The Outrage» («O Ultraje»), 1964, de Martin Ritt. E que dizer da apropriação de Sergio Leone de um clássico das lutas mercenárias, «Yojimbo» («Yojimbo, O Invencível»), 1961, que inspirou o seu western «Per un Pugno di Dollari» («Por Um Punhado de Dólares»), 1964? Recentemente, «Ikiru» («Viver»), 1952, foi objecto de um simpático mas insuficiente remake inglês ,«Living» («Viver»), 2022, de Oliver Hermanus e, já este ano, o afro-americano Spike Lee enrolou outra das suas joints e avançou para «Highest 2 Lowest», 2025, segundo o próprio, não um remake mas uma reinterpretação de um dos expoentes máximos do filme policial no contexto da indústria cinematográfica japonesa e não só, «Tengoku To Jigoku» («Céu e Inferno»), 1963. Na base do argumento de Akira Kurosawa (coadjuvado por Hideo Oguni, Ryuzio Kikushima e Eijiro Hisaita), mais uma vez, encontramos um referente ocidental. Desta vez, não europeu mas norte-americano, o thriller «King’s Ransom», publicado em 1959 e escrito por Ed McBain. Para quem não saiba, nada mais, nada menos do que Salvatore Albert Lombino, ou melhor, o escritor Evan Hunter.

De início, somos introduzidos a um conflito de poder no seio restrito de um grupo de sócios de uma empresa de calçado, não por acaso designada “National Shoes”. Numa lógica puramente capitalista, replicavam as práticas dos mercantilismos financeiros no período em que ainda se faziam sentir os ecos da ocupação americana e a memória, ou a falta dela, relativamente aos anos de brasa da Segunda Guerra Mundial e da correspondente capitulação e ocupação do Japão por parte dos Estados Unidos. Durante a discussão, Kingo Gondo (Toshiro Mifune) será pressionado a adoptar métodos pouco sérios no fabrico de calçado feminino, que ele recusa por não corresponderem aos padrões de qualidade que julga deverem prevalecer, mesmo numa indústria com legítimas expectactivas de gerar apetecidas margens de lucro para os seus accionistas. Desse modo, o obstinado empresário irá distanciar-se gradualmente dos restantes sócios ao não assumir a estratégia calculista de baixar a qualidade dos sapatos de modo a que os consumidores fossem obrigados a renovar constantemente as suas compras. Dá-se então uma inevitável ruptura. Kingo Gondo habita um confortável e espaçoso apartamento de luxo onde vive com a mulher e o filho, ainda criança. Do lado da sua força empresarial, aparentemente, encontra-se um executivo que funciona como braço-direito e gestor de negócios e demais burocracias. Não obstante, mais adiante saberemos como a ambição mata com inusitada rapidez a ilusória fachada de lealdade, invertendo-se o quadro solidário de valores corporativos que até ali pareciam sólidos e algo imutáveis.

Entretanto, praticamente na mesma altura em que os plutocratas mais do que irritados abandonavam o local, dá-se o rapto de uma criança, o filho do motorista de Kingo Gondo. De facto, o raptor (Tsutomu Yamazaki) confundira-o com o filho do patrão. Este incidente, mesmo após as partes em presença perceberem o deslize da acção criminosa, acaba por colocar uma pedra na engrenagem que o empresário urdira e que passava pelo plano de adquirir uma percentagem maioritária da “National Shoes” que lhe permitisse ficar com o seu controlo. Para os devidos efeitos, havia passado um cheque de 50 milhões de ienes, dinheiro que reunira num contexto de alto risco, a saber, a sua casa e os seus bens encontravam-se penhorados até que se concluísse em Osaka o negócio de aquisição das acções pretendidas. Mas os contornos do rapto não deram apenas lugar ao natural stress da ocasião. Introduziram igualmente um venenoso plano de chantagem e um pedido de resgate por parte de alguém que se irá manter por largos minutos um interlocutor na sombra. São exigidos 30 milhões de ienes, uma soma considerável mesmo para os padrões de vida de um milionário. A partir daí a narrativa adquire uma outra dimensão, digamos, moral e existencial. Na verdade, o dilema reside nesta muito complicada equação: o raptor ameaçava matar a criança se não fosse pago o resgate, mas se o pagamento fosse concretizado isso significava a perda do dinheiro e o investimento previsto para confirmar o controlo da “National Shoes”, na prática o evaporar da fortuna pessoal que mantinha o estilo de vida de Kingo Gondo e família. Tratava-se para o capitalista de encarar o espectro do regresso a uma vida humilde e, pior, ver o seu estatuto pessoal e profissional cair para níveis inferiores da escala social. Enquanto estas questões pairavam na atmosfera cada vez mais pesada de um apartamento vigiado ao longe pelo autor do rapto, Akira Kurosawa faz entrar em cena um grupo de polícias destacados com algum grau de dissimulação, para não dar a entender ao raptor que se dera a abertura de uma nova barricada que, como a dele, devia permanecer na sombra. De entre a força policial sobressai a figura de um detective (Tatsuya Nakadai). Pouco a pouco, serão estabelecidos contactos entre o raptor e o empresário e, num acto de alguma coragem, que só na aparência parece altruísta, Kingo Gondo decide pagar o resgate. Naturalmente, a polícia fez sentir antes que no processo de investigação iria tentar os possíveis e impossíveis para que o dinheiro fosse recuperado. É aqui que começa verdadeiramente a que podemos chamar de segunda parte de “Céu e Inferno”. Por contraste com a primeira metade, esta será consubstanciada numa planificação onde prevalece uma multiplicidade de pontos de vista, servida por uma fotografia e uma banda sonora de grande eficácia e por um ritmo de montagem milimetricamente pautado por diferentes episódios e pelos mil e um caminhos de uma investigação determinada a identificar o raptor e respectivo paradeiro. Neste muito seguro modelo de ficção em que não se descura nada do que possa ser essencial participa um leque muito abrangente de agentes policiais que procuram encontrar e sistematizar os mais pequenos indícios capazes de fornecer uma centelha que seja de informação que permita reconstituir o posicionamento e as movimentações do raptor. Neste processo, o espectador será lançado numa corrida alucinante em que a descida do Céu, o lugar reservado ao privilégio social, dá lugar ao Inferno, o caldeirão de contradições por onde circula a miséria humana, o submundo da cidade onde paredes meias com o comum dos cidadãos podemos encontrar as mais diversas redes criminosas, a prostituição orientada para os frequentadores locais dos bares da noite e para alguns estrangeiros que por ali se embriagam, prováveis restos da ocupação americana e de alguns esquemas inerentes aos caminhos sinuosos do mercado negro que nessa época floresceu. Mais grave ainda, os agentes penetrarão no antro de degradação física e mental que o consumo desenfreado de drogas implicava, nomeadamente a heroína.

Do ponto de vista da realização, o filme que ao início parecia evoluir num quadro cénico de marcações rigorosas mas algo rígidas quanto ao posicionamento dos actores, a que a dimensão do ecrã largo (Tohoscope) dava particular significado no desenrolar da sua interacção, adquire uma dinâmica de maior fragmentação espacial que nos leva a percorrer o olhar por cada pormenor, cada linha de fuga, cada contraste entre o que sabemos e vemos e o que as personagens na sua diversidade sabem, ou não. Toda a sequência da entrega do resgate a partir do interior de um comboio expresso em movimento podia servir para uma boa dose de aulas numa muito exigente escola de cinema. Nota máxima, sem qualquer dúvida. Também preciosa será a ideia do realizador e argumentista de nos dar a conhecer relativamente cedo o corpo e o rosto do criminoso, assim como de algumas das suas circunvoluções. Porque, desse modo, a sombra que ele representava adquire uma cor ainda mais negra. Porque assim a sua exposição, mesmo difusa na penumbra ou na falsa e enganosa luminosidade dos néons, dá-lhe uma dimensão humana que irá justificar e sustentar o portentoso final na prisão. Depois de condenado, consciente da proximidade da morte, o raptor rejeita o conforto pacificador da religião e prefere falar com o industrial que no fundo queria vencer mas não venceu. Parece confiante ao encarar de frente o seu “adversário” social. Mostra raiva, mas esboça um sorriso sarcástico e nervoso quando as palavras atingem um patamar confessional. Sejamos francos, ambos viveram situações limite e era expectável que só uma das partes acabasse por soçobrar. Kingo Dongo acaba por ouvir da boca do delinquente as motivações para este se querer vingar dos desastres e infortúnios de uma vida remediada atacando a estabilidade de quem ele pensava ser um dos bafejados pela sorte e pelo poder do dinheiro. Na verdade, suprema ironia, sabemos que Kingo Gondo ascendera na pirâmide social por causa do dote da mulher. Ele próprio começara por baixo, um simples artesão. No final, o que foi encarcerado sente a derrota e, desesperado, não mantém a dignidade que porventura quisera assumir como um derradeiro desafio. Do lado contrário da rede que os separa (de novo o Céu e o Inferno), um Kingo Gondo/Toshiro Mifune em estado de graça olha para aquele que o quis destruir, e nos seus olhos firmes e penetrantes podemos finalmente ver o que muito bem quisermos ver. Porque Akira Kurosawa fez o que precisava para que as personagens falassem por si, num distanciamento que não pressupõe julgamentos sobre as razões do milionário nem sobre as do criminoso, sobre as máscaras da justiça ou da injustiça, sobre a virtude ou a falta dela. Só pela sequência final podemos considerar este filme uma obra-prima…!
Título original: Tengoku to jigoku Realização: Akira Kurosawa Elenco: Toshirô Mifune, Tatsuya Nakadai, Tsutomu Yamazaki Duração: 143 min. Japão, 1963

