No final de uma estranha lição de francês onde ninguém fala francês, a não ser a professora quando anota num caderninho e recita em voz alta a síntese das emoções expressas pelo aluno em inglês (após prolongadas conversas recheadas de interrogações ao estudante seu interlocutor sobre o que sentia ou não sentia ao fazer algo que o apaixonava), uma senhora da classe média coreana que acabara de receber e pagar uma dessas lições e passara umas horas a conversar, a comer e a beber como se isso fizesse parte da aula e do processo de aprendizagem, pergunta ao marido que por perto se deixara estar: “Porque será que veio para a Coreia?” Refere-se esta burguesa (que desejava aprender francês, vá-se lá saber para quê) “naturalmente” a Isabelle Huppert, ou melhor, a Iris, a francesa que no filme «Yeohaengjaui Pilyo» («As Aventuras de Uma Viajante na Coreia do Sul»), 2024, produzido, escrito e realizado pelo prolífico Hong Sang-Soo, não é outra senão a dita professora. Digo “naturalmente” porque ao longo do processo narrativo (feito de muitos diálogos, mas com menos comida e bebida do que costuma acontecer nos filmes do realizador) a composição de Isabelle Huppert dá corpo e alma a Iris (seja ela professora ou uma simples aventureira) numa dialéctica definida pela relação entre a sua persona de ficção e a presença real da própria actriz. De facto ao assumir a máscara da sua personagem não procura outra coisa senão o que era suposto ser e parecer no contexto global do elenco, ou seja, a personificação da outra, a que não encaixa “naturalmente” na realidade local. Trata-se, aliás, de uma mulher mais ou menos perdida numa qualquer cidade da Coreia do Sul, onde a comunicação oral de um estrangeiro que não domine o coreano se faz com dificuldade se não encontrar quem saiba falar ou “arranhar” umas frases em inglês. Para os devidos efeitos, essa identificação personagem/actriz espoleta os caminhos cruzados inscritos no argumento e no correspondente guião, mesmo quando uma certa improvisação se consuma num gesto, num esgar, num sentimento que encontra a sua razão de ser na partilha do momento por parte dos actores.

Diga-se de passagem, este filme vem na sequência de dois anteriores de Isabelle Huppert com Hong Sang-Soo, a saber, «Dareun Naraeseo» («Noutro País»), 2012, e «La Caméra de Claire», 2017.Na verdade, para dar força aos principais conflitos dramáticos, o realizador necessitava de confrontar duas faces do mesmo espelho: Iris (a personagem) e Isabelle Huppert (a actriz, mais a sua identidade nacional). O primeiro confronto de Iris consubstancia-se com uma jovem sonhadora que a certa altura, ao piano, e no modo como demonstra posteriormente a sua insatisfação, evoca um filme “antigo” da protagonista, «La Pianiste» («A Pianista»), 2001, de Michael Haneke. Esta jovem, com que o filme abre as portas para uma série de sequências onde prevalece o domínio da palavra dita e um ou outro silêncio revelador, mostra-se muito mais vulnerável do que a senhora astuta e materialista que referimos ao início, ou seja, aquela que não hesita em questionar a presença da estrangeira que não sabe ou não quer funcionar com os códigos da sociedade sul-coreana. Basta ver como acolhe Iris em sua casa e o modo como ela e o marido descobrem, com vocal surpresa, o gosto confesso da francesa pela bebida Makgeolli, autêntica instituição alcoólica da Coreia do Sul. Basta ver igualmente como o casal faz um esforço para ser simpático e aceitar da parte de Iris um hábito muito gaulês, e não só, na verdade muito europeu, de dar dois beijinhos na cara na hora das despedidas. Para além do mais, na prática, não o dizem alto e bom som, mas não ficaram muito convencidos com aquela aula dada pela alegada professora de francês, nem com a sua personalidade, nem com a eficácia ou sustentabilidade científica do seu método de ensino. Também não ignoram as contradições entre o modo de ser coreano e o modo de ser e estar da estrangeira, que na prática os interpelou, situação que para os locais faz a maior diferença (se fosse no Japão ainda seria pior).

Este aspecto será essencial para percebermos o derradeiro confronto verbal e emocional que se irá estabelecer entre uma mãe e o seu filho. Ele vive no mesmo apartamento com Iris, provavelmente numa comunhão de interesses que não passa necessariamente por sexo, mas algo bem mais prosaico como a partilha de despesas. Enfim, a acreditar na progenitora, o filho sente a falta de uma figura materna. Nas entrelinhas, o diálogo cheira a autocrítica relativamente a assuntos que ficaram mal resolvidos no passado. Mas o rapaz não se comove. De facto, com alguma surpresa, víramos Iris com as suas sui generis lições de francês arrecadar num só dia uma boa quantia de dinheiro. Ao oferecer o lucro da sua actividade ao parceiro, ninguém duvida que se podia manter, pelo menos do ponto de vista económico, a boa harmonia do lar. Mas Hong Sang-Soo, pelo modo como articula os encontros e desencontros entre Iris, o rapaz e a mãe, faz-nos crer que a continuidade de uma pretensa felicidade baseada numa relação meio passageira e meio escondida só podia resultar num fracasso. Mais, se considerarmos com realismo o lado vulnerável das aulas dadas por Iris e o duvidoso modelo pedagógico que inventou, o mais certo seria ver a curto prazo os alunos mandarem a professora dar uma valente curva ao bilhar grande. Isto se o filme continuasse a focar essa vertente. Felizmente, não continua. Porque Hong Sang-Soo não escreve a direito, prefere linhas sinuosas, e por isso opta por encenar uma declaração final de amizade que resgata de novo a inquieta juventude do rapaz e a inquietante meia-idade de Iris. Deste modo, aponta o caminho de uma solução de compromisso que passa por uma serena mas imensa resignação. Resta a pergunta, nunca respondida: “Por que carga d’água veio esta francesa para a Coreia do Sul?” E, já agora, acrescentemos uma outra: “Por que fica ela na Coreia do Sul?” Por amor? Porque não encontrou alternativa? Porque chegou ao fim da viagem? Todas as hipóteses ficam em aberto!
Do filme fica ainda a sensação de que o realizador continua a falar do que quer, a dar as cartas que bem lhe apetece e a jogar com quem lhe presta justificada atenção num contexto de plena cumplicidade. Tudo para nos dar a conhecer histórias de ficção como quem faz a crónica do real apoiada em personagens que podíamos encontrar na primeira esquina do destino. Neste caso, no interior das quatro linhas do enquadramento. Talvez por isso, por ser um cinema que se impõe de forma “natural”, em 2024 os jurados do Festival de Berlim atribuíram a este «As Aventuras de Uma Viajante na Coreia do Sul» o Urso de Prata, correspondente ao Prémio do Júri.
Título original: Yeohaengjaui Pilyo Título internacional: A Traveler’s Needs Realização: Hong Sang-Soo Elenco: Isabelle Huppert, Lee Hye-yeong, Kwon Hae-hyo Duração: 90 min. Coreia do Sul, 2024