Desengane-se se pensa que vai ver mais uma comédia ao cinema, com um cão fofo como protagonista e uma heroína feminina que nos fala sobre os seus amores e desamores, e as suas frustrações profissionais. «O Processo do Cão», protagonizado, escrito e realizado por Laetitia Dosch é um pouco mais do que isso. De uma forma amplificada e muitas vezes absurda, esta é uma história inspirada em factos verídicos que mostra, acima de tudo, como é que a sociedade se perdeu, algures, caindo num exagero e num contrassenso que parece difícil de recuperar.
Mas comecemos pelo início. A premissa do filme é (ou parece ser) simples: Avril (Laetitia Dosch) é uma advogada com um historial de casos perdidos que, perante o ultimato do chefe, faz uma promessa a si mesma: ganhar o seu próximo caso! Mas quando Dariuch, um cliente tão desesperado como a sua causa, lhe pede para defender o seu fiel “cãopanheiro” Cosmos, a intuição de Avril assume o controlo. É nesse momento que se dá início a um julgamento tão inesperado quanto caótico: o processo do cão Cosmos, que mobilizou e antagonizou várias pessoas na Suíça.
Escrito, realizado e protagonizado por Laetitia Dosch, «O Processo do Cão» marca a sua estreia na realização. Baseado em eventos reais na Suíça, o filme faz uma sátira do sistema judicial e provoca uma reflexão sobre a forma como tratamos os animais (como “coisas”, legalmente), sobre a nossa própria estrutura social e sobre a polarização que o mundo enfrenta actualmente. Selecionado para a secção Un Certain Regard, este filme deu ao cão Kodi (nome real do “Cosmos”) o prémio Palm Dog e foi nomeado para o Caméra d’Or, assim como para o Prémio Louis Delluc de Melhor Primeiro Filme.
«O Processo do Cão» exige, então, uma segunda leitura de tudo o que estamos a ver. Mais do que alguns atos cómicos do momento, o filme é uma reflexão (bastante) séria sobre o mundo de hoje, sobre a forma como tudo é sentenciado com um extremismo cego, muitas vezes patético, como o simples facto de se julgar um animal por agir segundo o seu instinto natural, ou a absurda constatação de que os cães são misóginos pois mordem sobretudo mulheres.
É absurdo e parece ser precisamente essa a intenção. Laetitia Dosch traz-nos uma sátira crua e inquietante sobre o mundo em que vivemos. Basta olhar com atenção para percebermos o quanto a realidade se tornou distorcida: polarização crescente, extremos a dominar o discurso, ausência de empatia e uma alarmante perda de consciência coletiva.
Como diz uma das personagens: “Retiramos os animais do seu habitat natural, da sua essência selvagem, e mantemos apenas os que conseguimos domesticar — os que nos servem, os que não nos desafiam”. Esta metáfora serve também de espelho à condição humana atual: centrados em nós próprios, perdidos na ilusão de controlo, cada vez mais frágeis enquanto espécie.
Aquilo que à primeira vista parece ser apenas uma comédia revela-se, afinal, um exercício de exagero sobre o que estamos a viver. Um mundo que, a cada dia, demonstra menos respeito pelas outras espécies, pelas diferenças de género, e até pela individualidade de cada ser humano, com as suas vulnerabilidades e virtudes. A infeliz notícia é que já não é exagero — é a nossa realidade.
Título Original: Le Procès du Chien Realização: Laetitia Dosch Elenco: Laetitia Dosch, François Damiens, Jean-Pascal Zadi, Anne Dorval, Anabela Moreira Duração: 80m Ano: 2024 País: Suíça
© BANDE À PART – ATELIER DE PRODUCTION – FRANCE 2 CINÉMA – RTS RADIO TÉLÉVISION SUISSE – SRG SSR – 2024


 
				 
     
     
     
     
    


