No site da produtora A24 encontramos um pequeno texto de Charlotte Wells que funciona como convite aos espectadores para descobrirem «Aftersun». A certa altura, nesse texto, a realizadora escocesa escreve que “a memória de uma memória se corrompe infinitamente”, porque – e ainda nas suas palavras – “relembrar um momento no tempo, e como ele nos fez sentir, é enquadrá-lo por um novo sentimento: o sentimento do que aquele momento significa agora para nós.” Esta ideia é talvez a melhor síntese que se pode fazer do filme em causa, uma primeira obra que liberta melancolia por todos os poros, vindo de um lugar longínquo na memória afetiva de quem o concebeu.

De facto, não seria preciso ter conhecimento prévio de que «Aftersun» é um objeto altamente pessoal: tudo no seu processo de evocação denuncia uma sensibilidade própria, se quisermos, uma forma intimíssima de recordar. E o que se recorda aqui? Umas férias de verão na Turquia, nos anos 1990, entre um pai divorciado, na casa dos 30, e a filha pré-adolescente; ele interpretado por Paul Mescal (nomeado ao Óscar), ela pela debutante Frankie Corio, dupla sintonizada por silêncios cúmplices, palavras e gestos fugidios. O sabor desses dias de verão forma-se sobretudo a partir dos fragmentos de vídeo amador (com a textura visual da tecnologia da época) e das conversas simples, quais momentos sem um pingo de afetação narrativa que atiram o espectador para uma zona “secreta”. Vamo-nos apercebendo de alguns sinais que apontam para o quadro depressivo da figura paterna, lá está, como uma recordação enquadrada por um sentimento maduro. Ou seja, o que a miúda não terá percebido na altura surge agora à luz de uma memória reconstruída pela consciência de um fim que se anunciava debaixo do sol da Turquia.

É pela imensa delicadeza deste ato de recordar, aqui registado com a “caneta” de tinta permanente do cinema, que «Aftersun» entra na galeria daqueles filmes que parecem cartas escritas em forma de ditado interior. A sua visão sensorial, discreta e misteriosa, vai colando à nossa pele uma tristeza indefinível, como uma despedida dispersa em detalhes subtis. No fundo, o que Charlotte Wells faz é a tradução cinematográfica do seu processo mental, que é indissociável do processo emocional da memória. Um pai como imagem de juventude, breve encontro (à semelhança do filme de David Lean com esse título), amor e perda – ou então como súmula do sentimento gravado na cinesia de uma última dança.

Título original: Aftersun Realização: Charlotte Wells Elenco: Paul Mescal, Frankie Corio, Celia Rowlson-Hall Duração: 102 min. Reino Unido/EUA, 2022

https://www.youtube.com/watch?v=vXKcWRu8K_U
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