Esta segunda e renovada abordagem de uma ficção lançada sob o signo do neo-peplum de milhões, o filme «Gladiador», 2000, realizado pelo mesmo Ridley Scott, apresenta-se vinte e quatro anos depois com o II da numeração romana e recupera os confrontos e as intrigas do poder conjugados com as lutas de morte entre gladiadores numa Roma muito mais fechada sobre si mesma, quase se poderia dizer encarcerada no círculo que a encerra para o melhor e para o pior na arena do Coliseu onde decorria boa parte da acção do anterior e decorre agora a parcela mais espectacular de «Gladiador II». Não admira que assim seja, pois a construção física do recinto do Coliseu não obedeceu desta vez apenas aos valores do CGI e dos efeitos visuais da era digital. Isso sente-se na materialidade das bancadas e até na dimensão e atmosferas mais compatíveis com a presença orgânica da multidão de figurantes que, para os devidos efeitos ficcionais, nelas grita e se manifesta nem sempre com grande dignidade e muito menos com espírito de compaixão ou simples humanidade para com o destino dos seres humanos que ali se matam e esfolam para gáudio dos cidadãos da cidade que alguns julgavam estar, por direito próprio ou divino, no centro do mundo.
Do anterior “Gladiador” vieram os ecos que justificam a natureza e identidade dos protagonistas e em particular do herói, Lucius Verus (Paul Mescal). Este jovem nunca esperaria ser levado para Roma nem louvado no circo como gladiador, não fosse o caso de a sua missão guerreira acabar na defesa de um pedaço que se queria não romanizado do Norte de África, a Numídia. Território abruptamente recuperado para Roma na sequência de um assalto naval de grande envergadura comandado pelo general Marcus Acacius (Pedro Pascal), que mais adiante iremos reconhecer como antigo camarada de armas do pretérito gladiador, o hispano-romano Maximus Decimus Meridius (Russell Crowe, presente nesta nova versão sob forma “fantasmática” em segmentos do anterior “Gladiador”). Para além do mais, o general Acacius, que se considera um simples soldado ao serviço do povo e não gosta do modo como o Império está a ser gerido, casou com a mãe de Lucius que, dada a sua linhagem, emprestou ao filho o estatuto, difícil de sustentar por si só, de príncipe de Roma. Todavia, para chegar ao poder, o filho Lucius precisava literalmente de passar por cima de várias personagens, cada qual a mais sinistra. Tal feito seria alcançável se usasse a sua energia como um rolo compressor movido com extrema violência. Só para citar os mais importantes obstáculos: primeiro os vários adversários que era obrigado a enfrentar na arena, depois os dois irmãos imperadores, Caracala (198 d. C. – 217 d. C.) e Geta (189 d. C.-211 d. C.), retratados como dois sanguinários calculistas e meio imbecis na sua andrógina aparência de canalhas, e por fim um esclavagista dono e senhor de gladiadores, aquele que empurrara Lucius para os combates de vida ou de morte, o africano politicamente hábil e de sibilina personalidade, Macrinus (Denzel Washington). Tem este último o objectivo a certa altura declarado de controlar os acontecimentos dentro e fora da corte romana, dentro e fora do Senado, de modo a assumir o poder absoluto numa era em que a fragilidade dos alicerces de Roma face aos conflitos lavrados no seu vasto Império anunciava a perspectiva de uma insurreição civil e militar movida pelo perfume inebriante de mudança que ajudava a conspirar a favor da República. No fundo, com as devidas diferenças de posicionamento na pirâmide social, Macrinus ocupa o lugar de mau da fita que pode ser comparado ao papel desempenhado por Joaquin Phoenix no filme anterior, a do Imperador Commodus (161 d. C. – 192 d. C.).
Aqui chegados, o leitor mais atento a pormenores interrogar-se-á ao ler as datas que balizam as vidas destas personagens: “Será que há alguma verdade histórica na base deste argumento e será que a podemos encontrar neste filme?” Sejamos práticos! Se pensam vir ver uma obra para estudar, que digo eu, para conhecer, um pouco mais da época em causa e o percurso dos verdadeiros nomes citados, desenganem-se. «Gladiador II», como o seu antecessor, não passa de uma obra de ficção. Pelo menos não cai na asneira de enfiar na arena do coliseu de Roma gladiadores que nunca lá poderiam estar antes de 81 d. C., data da sua inauguração durante o governo de Tito Vespasiano. Todavia, inúmeros filmes o fizeram, a começar por um clássico dos clássicos intitulado «O Sinal da Cruz», 1932, do inefável Cecil B. DeMille. Para os que não se recordam ou não viram o filme, a acção decorre durante o reinado de Nero (37 d. C. – 68 d. C.) e, entre outras linhas de força da narrativa, os cristãos são lançados sem dó nem piedade na arena do circo onde acabam devorados por feras, com especial destaque para os leões. Na verdade, antes de 72 d. C. o Coliseu não existia. Mas Hollywood fazia o que queria para garantir o espectáculo, e se necessário fazia a revisão e inversão da História, com H maiúsculo, a favor da outra história, com h minúsculo. Por outro lado, numa produção onde era preciso reproduzir sem efeitos especiais sofisticados os combates de gladiadores, garanto que a sensação de verosimilhança do guarda-roupa, armaduras e armamento da época era bem maior do que agora. Hoje há gladiadores e soldados que parecem competir entre si para saber quem vai ser eleito o mais bem vestido e armado para dar cabo do canastro do oponente e seduzir as plateias, nesta inusitada passagem de modelos, com os seus músculos e coragem de puro aço, provavelmente inoxidável. Estas fantasias integradas no subgénero “sword and sandals”, como se diz na gíria, são para muitos dignos de bola preta. Mas cá para mim, se formos ver estes filmes com a esperança de encontrar mais do que eles prometem, não me parece que sejam os produtores que erram mas sim aqueles que andam atrás de quimeras. Em vez de olharem para o que está dentro das quatro linhas do enquadramento, esquecem que há propostas de ficção que existem para nos oferecer uma boa dose de entretenimento, ponto final, parágrafo. Há algum pecado nesta opção? Sim, se a opção for corrompida pela falta de qualidade da estrutura fílmica. Sucede isso neste «Gladiador II», não obstante algumas limitações no desenvolvimento de certos conflitos dramáticos que podiam ser mais aprofundados? Não. Enfim, pelo menos nada de significativo que comprometa o resultado final. Quando muito, podia igualmente dizer que essa mediana segurança do caderno de encargos do filme no plano da ficção será razão para lhe atribuir menos uma ou duas estrelas das cinco possíveis. Mas a investida bélica do início, absolutamente empolgante e muito bem coreografada, os combates na arena em que se destaca a simulação de uma batalha naval, facto que realmente acontecia na época e constituía cabeça de cartaz de alguns jogos, a improvável luta de morte com babuínos e um ainda mais improvável confronto entre um gladiador montado num rinoceronte e as hábeis manobras de Lucius e dos seus companheiros na arte do gládio, numa palavra, a quase generalidade dos combates entre gladiadores, são motivo de sobra para ver e rever esta obra que, repito, ganha alguma força quando não quer ser outra coisa senão um exemplo do que sempre foi um dos slogans mais respeitados de Hollywood, ou seja, “That’s Entertainment”.
Frágil, por vezes demasiado esquemático e simplista, será a interpretação que o argumento faz da natureza intrínseca do poder e dos seus bastidores. Aí posso concordar que prevalece um excesso de caricatura na visão do mal face ao mal menor. Por fim, perpassa a ideia de que, por entre os banhos de sangue a que assistimos, há um gladiador de espada em riste que quer liquidar o mal e repor o bem. Só que, uma vez conquistado o objectivo, fica sem saber o que fazer com o poder alcançado. Na derradeira sequência de «Gladiador II» ficamos de facto com a ideia de que este não encerra em definitivo o segundo capítulo, ficando no ar a sensação de que algures há uma personagem que não apareceu, mas vai aparecer, oriunda das costas africanas do Mediterrâneo, para continuar aquela que se arrisca a ser saga de uma dinastia de combatentes, pela honra, pela glória e pela continuidade da acção e emoção dirigida ainda, quem sabe, por esse “bárbaro” chamado Ridley Scott.
Título original: Gladiator II Realização: Ridley Scott Elenco: Paul Mescal, Denzel Washington, Connie Nielsen, Pedro Pascal, Joseph Quinn, Fred Hechinger, Lior Raz Duração: 148 min. Reino Unido/EUA, 2024