Na imensidão indiferente de Londres, há vidas que se desenham à margem, quase invisíveis, como se existissem apenas nos interstícios das ruas da cidade. Mike é uma dessas vidas: jovem, ex-toxicodependente, marcado por um crime cometido quando a rua era o seu único tecto e a violência o seu único instinto de sobrevivência. Em «Urchin», acompanhamos o seu regresso a um mundo que já não o reconhece, um mundo onde cada passo em direcção à normalidade é travado por lembranças abrasivas, tentações sempre ao alcance da mão e pela constante sensação de estar suspenso entre o mundo dos vivos e o das sombras sociais. Harris Dickinson filma esta travessia com proximidade e sem artifícios, recusando o melodrama e preferindo uma observação que se insinua no quotidiano da sobrevivência.

Para quem o viu tão belo como Carl em «Triângulo da Tristeza» ( Ruben Östlund, 2022) quase não consegue reconhecer Frank Dillane no papel de um desmoronado Mike, com uma fisicalidade inquieta, permanentemente à beira da explosão, mas também com gestos de ternura inesperada que revelam o que resta de humano sob a carapaça endurecida. É esta dualidade que sustém o drama: Mike encanta mas nunca nos é permitido esquecer do quanto pode ser perigoso. Que o diga o bom samaritano que o tenta ajudar e a quem ele espanca e rouba numa ilustração gráfica do ditado inglês: no good deed goes unpunished. A sua complexidade é o eixo moral do filme: tem tanto de terno como de pernicioso. A narrativa põe forte ênfase nas forças externas que moldam o destino de Mike: a rigidez das instituições, a precariedade dos serviços sociais e a indiferença com que se varre a população sem-abrigo para os subterrâneos da cidade. Dickinson filma a rua como uma enorme máquina de moer gente e Mike como alguém que tenta escapar-lhe apenas com uma tenacidade de barata: muitas vezes pisada, meia destruída, mas persistente. Contudo, esta opção gera uma tensão conceptual: ao colocar a sociedade e o Estado como os grandes motores do destino de Mike, o filme corre o risco de o desprover da necessária responsabilização pessoal. A recuperação de um toxicodependente e a sua re-integração na sociedade é um processo que exige apoio, mas também exige decisão, disciplina e confronto consigo próprio. Aqui, a balança parece por vezes desequilibrada.

E é neste ponto que o filme se aproxima de um debate filosófico-político mais amplo. Karl Marx e Friederich Hengels cunharam o termo lumpenproletariat para designar a camada marginalizada da classe trabalhadora — o submundo do crime, dos sem-abrigo, dos que escapam às categorias produtivas. A Esquerda contemporânea, muitas vezes ansiosa por mostrar empatia e denunciar injustiças, tende a purificar simbolicamente esta faixa da sociedade, transformando-a em palco exclusivo de vitimização. «Urchin» participa dessa omissão ao sugerir que Mike seria outro homem se o Estado e a Sociedade cumprissem o seu (suposto) dever de cuidar escamoteando a responsabilidade pessoal do protagonista. Há que lembrar Jean-Paul Sartre nos ensina que o homem está condenado à liberdade. Uma liberdade que traz consigo uma responsabilidade absoluta que o filósofo resume no famoso chavão: “A liberdade é o que fazemos com o que fizeram de nós.” Esta não reside no facto de se poder fazer tudo o que se quer, outrossim de escolher e de querer em função do que nós é possível. A liberdade não é ilimitada, antes manifesta-se nas nossas acções e decisões conscientes. E Sartre vai mais longe alertando que perante essa liberdade avassaladora alguns desenvolvem um mecanismo psicológico a que ele chama de mauvaise-foi (má-fé): uma forma sofisticada de auto-engano pela qual se nega a própria liberdade atribuindo a responsabilidade das acções próprias a factores externos – a educação, a classe social, os genes, as emoções… Mike será o epítome deste caso. Temos um filme que compreende a ferida social, mas hesita em olhar de frente para o que há de moralmente difícil, mesmo em condições limite, nas escolhas humanas. Há que ressalvar, porém, que Dickinson tem absoluta legitimidade para filmar este mundo: trabalhou efectivamente com pessoas em situação de sem-abrigo e envolveu residentes de abrigos como figurantes, procurando impedir que o filme escorregasse para a caricatura ou para um distanciamento higiénico. Essa proximidade pessoal com a realidade das ruas sente-se na forma íntima como filma os pormenores: mãos que tremem, conversas que pairam entre o humor e o desespero, explosões afectivas entre a angústia e a réstia de esperança. Mas talvez por estar tão próximo resvalou para uma condescendência fraternal.

Do ponto de vista técnico, «Urchin» revela uma maturidade surpreendente numa primeira realização. Dickinson filma com a ARRI Alexa 35, uma escolha que lhe permite trabalhar a luz com grande latitude e obter textura cinematográfica sem sacrificar a mobilidade na rua. As lentes escolhidas (ARRI/Zeiss Master Primes) garantem nitidez suficiente para captar a rugosidade da pele e das superfícies, mas também a neutralidade óptica que evita um estilo documental acinzentado. A câmara mantém uma postura contemplativa, com zooms lentos e enquadramentos estáveis que deixam os espaços falarem tanto quanto os rostos. É como se Dickinson quisesse lembrar-nos que, para alguém como Mike, o cenário não é pano de fundo: é adversário permanente. A direcção de fotografia contraria o cliché de uma Londres parda e sem vida. Há uma busca deliberada pela cor: pequenos encarnados, azuis e verdes surgem aqui e ali como resistência ao apagamento. O guarda-roupa sublinha esta opção estética. Em vez de reduzir o sem-abrigo à habitual paleta de cinzentos e castanhos, o figurinista (Cobbie Yates) opta por roupas gastas mas com fragmentos de cor, pequenas reminiscências de identidade. Não é apenas pobreza destituída: é pobreza que ainda guarda memória de escolhas, de gostos, de passado. Este cuidado estético, que poderia parecer subtil, revela uma declaração política profunda: a miséria não destrói por completo a individualidade — apenas a esconde.

No balanço final, «Urchin» merece ser visto e, mais ainda, debatido. É um filme que se entrega à complexidade dos seus temas e que, apesar de alguns desequilíbrios conceptuais — sobretudo na tendência para atribuir a mudança de Mike quase exclusivamente a factores externos —, consegue deixar uma marca emocional forte pela força dramática que nasce da interpretação de Frank Dillane e a sensibilidade visual e humana do realizador. Mostra-nos que, sob a superfície aparentemente uniforme dos que vivem à margem, existem histórias, fracassos, memórias e tentativas de renascer. E talvez seja esse o seu maior triunfo: recusar o apagamento e devolver um rosto e uma voz a quem é tantas vezes tratado como invisível.

Título original: Urchin Realização: Harris Dickinson Elenco: Frank Dillane, Diane Axford  Duração: 99 min. Reino Unido, EUA, 2025

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