Depois de «O Crime É Meu», («Mon Crime«, 2023), aposta de François Ozon na comédia e na relação criativa entre dois mundos que muito devem um ao outro, o Teatro e o Cinema, o realizador preferiu regressar ao drama puro e duro em «Quando Chega o Outono», («Quand Vient L’Automne», 2024), abordagem das sombras de personagens com passados que não se podem ou devem escancarar face ao julgamento social vigente nas sociedades onde impera geralmente a hipocrisia e a dissimulação dos sentimentos mais íntimos. Todas as cores do Outono cabem neste seu novo filme. Todas as cores e cambiantes crepusculares que acompanham o aparentemente normal quotidiano de homens e mulheres, sobretudo dos que se encontram no ocaso da vida e se confrontam com o passado num presente aqui e além sem grande futuro.
François Ozon, na qualidade de autor e argumentista, escolheu para protagonizar esta história atravessada por muitas linhas de força, por vezes difíceis de encaixar numa primeira leitura do que vemos e ouvimos, uma antiga profissional do sexo, Michelle (Hélène Vincent), algo que saberemos cedo mas em devida altura e na sequência de acontecimentos dramáticos que envolvem a morte da sua filha. Filha com quem mantinha uma relação pouco saudável e de constante conflito, gerador de naturais contradições que por sua vez influenciavam a relação com o neto, filho único de pais separados e em processo iminente de divórcio.
O filme não fica apenas pela abordagem de relações humanas agrestes contaminadas por desacordos mal resolvidos. François Ozon procura antes provocar um certo número de conflitos dramáticos através de pequenos momentos, os chamados imponderáveis do dia-a-dia. Deste modo, quando Michelle recebe na sua casa, num lugar afastado dos grandes centros urbanos (zona rural da Borgonha), os “parisienses” filha e neto, na hora da refeição familiar iremos dar conta de como uns fresquíssimos cogumelos apanhados nas redondezas, depois de salteados com manteiga, serão um primeiro sinal que levanta um mundo de suspeitas. Tudo porque o neto diz que não gosta de cogumelos e prefere outras comidas mais rotineiras. Por seu lado, Michelle, incomodada com o comportamento da filha que se mostra muito nervosa com a proximidade da mãe, não prova o que ela própria cozinhou. A filha será a única a provar o manjar silvestre que, digo eu, qualquer gourmet adoraria degustar, e come com gosto a bela e deliciosa mistura de fungos silvestres. Mas, azar dos azares, vai parar ao hospital envenenada e safa-se por um fio. Todavia, não será este senão o prenúncio de uma morte que vai acontecer posteriormente em circunstâncias muito diversas e numa altura em que os extremados campos familiares sofrem com a interferência de outras personagens, nomeadamente a do filho (acabado de sair da prisão) daquela que nos fora antes apresentada como a melhor amiga e confidente de Michelle. Pelo meio, acontece um crime.
As circunvoluções dramáticas constituem apenas parte do novelo narrativo que a realização articula em sequências desenhadas com rigor, precisão que ajuda o espectador a não sentir o peso quase mórbido de alguns sentimentos que atravessam o filme e que provocam, diríamos, vivências “outonais” onde irão sobressair ecos de pecados que ficaram e ficam escondidos, outros recalcados ou esquecidos, que a cada passo empurram o núcleo protagonista para as atmosferas e abismos da culpa, da angústia e da má-consciência. Não podemos dizer que François Ozon não nos avisara quando baptizou o seu filme com essa espécie de frase feita «Quando Chega o Outono», como se fosse inevitável o ciclo das estações e o significado que a elas atribuímos. Mais, como se o curso que deu aos acontecimentos obedecesse a uma lei universal que nos colocasse sem apelo nem agravo face ao destino, como se este fosse inevitável no contexto do nosso ser individual e ainda no do colectivo da condição humana. Por isso, mesmo na sua sempre relativa frieza, a proposta fílmica que nos oferece carrega consigo a dose certa de fascínio gerado pelo desenrolar do fio condutor, e a resolução final não podia ser mais serena no quadro de uma ficção que desde o início não falara de outra coisa que não fosse da morte. Pois bem, cabe agora propor que o leitor seja o próximo a descobrir no visionamento desta obra os seus diversos rostos e as suas diferentes mutações.
Título original: Quand vient l’automne Título internacional: When Fall is Coming Realização: François Ozon Elenco: Hélène Vincent, Josiane Balasko, Ludivine Sagnier, Garlan Erlos Duração: 102 min. França, 2024
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