Na sequência inicial de «Os Fantasmas» («Les Fantômes»), 2024, primeira longa-metragem de Jonathan Millet, e ainda sob o genérico, vemos um grupo amontoado de vultos humanos no interior do que parece ser um camião. Dirigem-se aos solavancos para algum lado, e logo aí começamos a adivinhar o pior. Pouco depois confirmamos que são um numeroso grupo de homens, meio esfarrapados, um grupo de prisioneiros (deduzimos políticos e de guerra) que vão ser “libertados” no meio do deserto. Melhor seria dizer, despejados e deixados naquelas paragens nada propícias a qualquer quadro de sobrevivência, onde o calor abrasador durante o dia contrasta com o frio mal cai a noite. Na verdade, aquela deslocação para um local inóspito e desconhecido seria uma outra forma de condenar e castigar quem já fora submetido ao horror de uma qualquer prisão do Médio-Oriente. De repente vemos soldados fardados que os incitam a desaparecer e seguir em frente (resta saber para onde), e quem estiver atento verifica pela bandeira que ostentam na farda que são militares sírios, mais do que provavelmente das fileiras do regime do Presidente Bashar al-Hassad (diga-se, recentemente deposto por forças igualmente pouco recomendáveis). Nesta fase, a realização não quer dar mais do que a informação necessária e suficiente para percebermos o contexto geral do que se irá passar a seguir, ou seja, a verdadeira e incisiva abordagem narrativa de um assunto pouco abordado pelos serviços noticiosos, por serem esquemas associados a estratégias de clandestinidade. Todavia, são operações executadas na sombra que fazem parte da prática quotidiana de muitos conflitos armados, assim como de muitas guerras que entraram, digamos, em modo de pausa ou que acabaram mergulhadas numa paz podre. Manobras particularmente secretas no período sempre difícil do rescaldo e no ainda mais sinuoso ambiente da reconciliação, pilares muito frágeis do edifício em que se albergam os mais incómodos fantasmas, angústias e dúvidas, e os rancores que povoam o quotidiano e invadem a alma de quem sofreu as consequências de combater na frente política ou militar.

Neste filme fala-se de homens e mulheres que vivem num mais ou menos discreto e silencioso exílio europeu, e fala-se ainda da perseguição metódica que alguns operam para descobrir o paradeiro dos antigos e actuais criminosos de guerra. Muitos militam em organizações como aquela a que pertence um dos protagonistas, o sírio Hamid (interpretado pelo franco-tunisino Adam Bessa). Trabalha agora em França, como operário da construção civil, este antigo dissidente político e professor de literatura. Ele, que passou pela prisão de Sednaya, conhecida pelo cognome de “O Matadouro Humano”, situada no Norte de Damasco, capital da Síria. Ele, que víramos na citada sequência de introdução, abandonado como os outros no meio do nada. Os Fantasmas de que se fala são para ele os fantasmas da vingança, os fantasmas da dissimulação, e os passos fantasmáticos que assume na perseguição aos seus inimigos com o objectivo declarado de que se faça justiça. Esta filosofia de vingança exercida num plano judicial ou até extrajudicial comporta riscos. O que persegue nem sempre está seguro de que o perseguido seja aquele que supostamente esconde e disfarça os crimes cometidos, que seja o carrasco que deve ser confrontado com a sentença suprema que por fim pacifique os espectros que atormentam o juízo, por vezes sumário e sectário, da sua vítima. Numa guerra ou nos seus ecos perdidos, aliás, nunca será fácil determinar a fronteira entre os que assumiram convictos uma causa e a manifestação pura e dura da barbárie que empurra o mais comum dos mortais para comportamentos mais do que reprováveis. Não obstante, já quando analisamos actos de selvajaria no interior de uma prisão, muitas vezes damos conta de que alguns carcereiros aproveitam a sua posição de poder para soltar os instintos mais primários. Teria sido esse o caso do agora aparentemente normal cidadão sírio e estudante universitário, igualmente exilado na Europa, Sami Hanna, dito Harfaz (interpretado pelo palestiniano-israelita Tawfeek Barhom). Hamid vigia-o como se disso dependesse o apaziguar da dor que comporta a natureza das suas cicatrizes físicas e espirituais, o pesadelo de amargas experiências passadas. Teria sido Harfaz o militar que submeteu Hamid a uma série continuada de sevícias na prisão? Como saber ao certo quem afinal exercia essa violência quando o agressor se dava ao cuidado de ocultar a sua identidade enfiando um saco na cabeça do agredido? Toda a investigação que Hamid espoleta parte deste simples princípio: encontrar a chave de um enigma e reunir os pontos que possam definir, com verdade, a verdadeira dimensão do ser ou não ser Harfaz o alvo a abater. Minuto a minuto, dia após dia, procurará recolher provas inequívocas de que não se enganara na escolha, chegando ao ponto de se aproximar de Harfaz para lhe sentir e reconhecer o odor corporal. Mas as coisas não são fáceis num contexto em que mesmo outros refugiados não se sentem a salvo dos eventuais espiões do regime. Por esse motivo, Hamid possui uma dupla preocupação: prosseguir com alguma segurança e discrição o seu caminho de espião contrário ao poder instalado em Damasco e evitar cair nas armadilhas de um dia a dia no qual ninguém parece confiar em ninguém.

Mas o argumento atinge o seu ponto máximo quando Hamid não resiste ao contacto directo com Harfaz, cara a cara, e o que se vai passar entre ambos aumenta consideravelmente a pressão no quadro anteriormente referido. De facto, a partir desse momento fulcral iremos acompanhar o percurso dos dois sírios como se eles caminhassem no fio de uma navalha, podendo cair qualquer deles para um lado ou para o outro da barricada. Isto se qualquer das partes ainda pudesse reivindicar uma barricada para se proteger. Repetimos, aqui nada pode ser dado como garantido. Este jogo do rato e do gato constitui o melhor do projecto fílmico intitulado «Os Fantasmas», a que se junta a boa prestação dos actores e a excelente articulação da acção suportada por uma montagem e um espaço sonoro eficazes na criação de atmosferas de suspense. Esta estrutura ficcional, ao que se diz baseada em factos reais, faz deste filme, que evita a mera dicotomia do bem contra o mal, um exemplo de cinema de intervenção política que merece ser visionado e discutido, sobretudo numa altura em que no país dos protagonistas e relativamente ao futuro que se avizinha, imperam mais interrogações do que respostas. Numa palavra, país mais do que provável berço de uma ou mais gerações de fantasmas!
Em 2024, foi o filme de abertura da Semana da Crítica do Festival de Cannes e, no mesmo ano, recebeu o Prémio Louis Delluc para a Melhor Primeira-Obra.
Título original: Les Fantômes Título internacional: Ghost Trail Realização: Jonathan Millet Elenco: Adam Bessa, Tawfeek Barhom, Julia Franz Richter Duração: 106 min. França/Bélgica/Alemanha, 2024
fotos: © Films Grand Huit_Kris-Dewitte