Na Alemanha não foi dado apoio financeiro público ao filme «Hitler e Goebbels» («Führer und Verführer»), 2023, de Joachim A. Lang. Deste modo, os produtores procuraram outros financiamentos e optaram por desviar a rodagem do filme para Bratislava, capital da Eslováquia. De algum modo, a posição alemã partia do pressuposto frágil, algo paternalista e pouco consistente sobre o que estava em causa no projecto, a saber, uma abordagem crítica mas não dicotómica, muitas vezes caricatural, como habitualmente os dirigentes nazis são retratados. Posição ainda mais frágil porque deixa no ar uma certa desconfiança em relação ao juízo de o povo alemão, e não só, ser capaz de separar as águas entre os valores da civilização e os sinuosos valores da barbárie. Enfim, acredito que, mesmo sem querer, a ausência de apoio oficial comporta nas entrelinhas uma espécie de má-consciência que muitos julgavam enterrada oitenta anos após a derrota do nazismo e do fascismo na Europa, o fim da Segunda Guerra Mundial no Velho Continente. Infelizmente, como se sabe, o conflito ainda levaria alguns meses a ser concluído no Pacífico, e só ocorreu após a capitulação do regime imperial japonês. Mas o que interessa no final das contas são os resultados obtidos, e na prática devemos salientar e saudar a persistência de quem apostou na continuidade da produção, por mais incómoda que ela se perfilasse. E o filme, mesmo com um relativo atraso, aí está para nos revelar uma ficção baseada em factos reais sobre um período negro da História da Humanidade. Para os devidos efeitos, a sua matéria primordial incide nos mecanismos usados pelo regime nazi de modo a organizar, condicionar e manipular a informação com o objectivo de moldar a opinião e o comportamento de vastas camadas da população e influenciar as massas para quem a propaganda política era concebida em larga escala. Leia-se, a propagação da mentira que, para ser segura e atingir profundidade, precisava de ser condimentada com uns pozinhos de verdade, ainda que seleccionados e censurados.

O título original em alemão, «Führer und Verführer» joga com palavras e conceitos para definir a dupla de protagonistas com mais presença na estrutura ficcional. Por um lado, a designação Führer (que significa líder, chefe, o guia). Falamos naturalmente de Adolf Hitler. Por outro, o vocábulo Verführer (que significa sedutor, mas que pode ser lido nas entrelinhas como demagogo e manipulador). Falamos do Dr. Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda da Alemanha Nazi. Estas duas sinistras figuras, interpretadas respectivamente por Fritz Karl e Robert Stadlober, serão os protagonistas que veremos nas suas reuniões e nos seus actos oficiais, mas igualmente na intimidade dos redutos familiares. Os dois nem sempre partilhavam as mesmas ideias sobre os assuntos mais prementes relacionados com a consolidação da estratégia que levaria os nazis e os países seus parceiros, sob domínio fascista e imperialista, a empurrar o mundo para uma guerra devastadora. Na verdade, novo conflito que no subconsciente alemão servia para vingar a humilhação imposta pelos aliados na sequência da rendição no final da Primeira Guerra Mundial. Mas este fantasma identitário vivia paredes meias com outras preocupações, nomeadamente o combate aos ideais da esquerda e a qualquer solução que implicasse um sistema democrático, ambiente suportado pela valorização de uma ideologia de extrema-direita, racista e militarista, ou seja, a caução para a construção de uma nova realidade política e geográfica, o idealizado Terceiro Reich, no qual a Alemanha voltaria a ser grande outra vez. Onde é que já ouvimos algo de muito parecido? Todavia, apesar de um ou outro arrufo entre os partidários e ideólogos do regime nazi, parece evidente que Joseph Goebbels era olhado por Adolf Hitler como o homem necessário, quase providencial, aquele que, na sua opinião, podia e sabia vender a banha da cobra propagandística com invulgar eficácia. Na imprensa, na rádio e no cinema. Neste último campo, por exemplo, salientam-se na ficção duas obras maiores, apesar de miseráveis no seu perfil doutrinário: o anti-semita «Jud Süß» («O Judeu Suss»), 1940, e o patriótico «Kolberg» («Burning Hearts»), 1945. De igual modo, no domínio dos documentários, não podemos esquecer as duas obras-primas de Leni Riefenstahl, a quintessência da “arte” da manipulação, o «Triumph des Willens» («O Triunfo da Vontade»), 1935, e o filme oficial dos Jogos Olímpicos de Berlim, realizados em 1936, obra monumental concebida em duas partes: «Olympia 1. Teil – Fest der Völker» («Festival das Nações») e «Olympia 2. Teil – Fest der Schönheit» («Festival da Beleza»).

Mesmo que isso significasse fechar os olhos a muita coisa, a começar pelo modo como a mulher do ministro da propaganda e mãe de uma considerável prole era desrespeitada pelo marido (sobretudo por causa dos excessos de natureza sexual com prostitutas e arrivistas em busca de um lugar ao sol), o ditador Adolf Hitler não dispensava os serviços de Joseph Goebbels. Diga-se que a senhora Magda Goebbels, no seu fanatismo e dedicação ao Führer não era igualmente flor que se cheire. De algum modo, muito do filme «Hitler e Goebbels» ancora neste pressuposto e nesta contradição maior. Joseph Goebbels está longe de ser um homem ou um político exemplar, mas a sua capacidade para criar factos a partir de mentiras, assim como fascinantes e sedutoras manifestações para consumo das mais amplas camadas populares, como dissemos, apoiadas em pedaços convenientes de verdade, deu-lhe o poder quase absoluto que precisava para assim sobreviver aos seus inimigos, quer os mais próximos, incluindo os familiares, quer os mais improváveis e difíceis de descortinar no próprio círculo íntimo do poder. Por isso não admira que Joseph Goebbels, até mais do que o Führer, apareça como o motor da acção, sendo os seus actos e a sua personalidade a marcar o ritmo narrativo de um filme que, logo nos minutos iniciais e antes do genérico, não esconde ao que vem. Na verdade, as primeiras sequências de «Hitler e Goebbels» são um bom exemplo de como muitas vezes, para ganhar eficácia e fazer sobressair uma personagem, nada como começar pelo fim. Neste caso, descrevendo a morte de Joseph Goebbels, propositadamente ritualizada e para a qual arrastou a sua mulher e os seis filhos. Também nesta sequência inicial iremos constatar que, quando há necessidade de sermos directos, de dizermos o que há para dizer sem filtros apaziguadores, mesmo que isso implique alguma violência imagética, não devemos hesitar em mostrar material documental da época que vale bem por mil palavras. E o que vemos são os corpos calcinados de Joseph Goebbels e da mulher, junto dos cadáveres das crianças alinhados no chão do bunker onde os progenitores decidiram suicidar-se. São materiais oriundos de arquivos preciosos e a sua inserção permite aqui o espoletar de um sobressalto madrugador que invade o olhar e a consciência do espectador. Mas quem vir o filme até ao fim irá perceber que o pesadelo nazi atingiu proporções monstruosas e desumanas que não podiam ser expostas, muito menos denunciadas, com falinhas mansas e paninhos quentes. Por isso mesmo há muito para observar e interpretar nesta obra, sobretudo quando somos confrontados com material de arquivo onde se fixou para sempre o mal absoluto. Dar a ver o que não deve ser escondido ou ignorado, para evitar que se repita, parece ser a palavra de ordem. Tal como se diz numa das várias legendas que vão assinalando e contextualizando a montagem proposta que amiúde cruza imagens reais, filmadas na época, com imagens reconstituídas, “Só um estudo mais próximo dos maiores vilões da História pode desmascarar e desarmar os demagogos do presente”.
Este filme, não sendo perfeito, pode ser encarado como uma contribuição sustentável para esse esforço que compete a cada um de nós realizar, no plano individual e colectivo. Para justamente “evitar que se repita”.
Título original: Führer und Verführer Título interncional: Hitler & Goebbels Realização: Joachim Lang Elenco: Robert Stadlober, Fritz Karl, Franziska Weisz Duração: 135 min. Alemanha/Eslováquia, 2024
fotos: ©_Zeitsprung_Pictures_SWR_Stephan_Pick