Costa-Gavras, que recebeu este ano o César Honneur pela sua carreira, traz-nos «Le Dernier Souffle/ O Último Suspiro». Um filme que arrisca uma simplicidade aparente para abordar uma dos temas humanos mais complexos: a morte e a forma como a sociedade a acompanha. Partindo do livro homónimo — fruto da colaboração entre o filósofo Régis Debray e o médico de cuidados paliativos Claude Grange — o realizador transforma um ensaio em pequenas cenas vivas, estudos clínicos de dor e ternura, e num diálogo central que estrutura o filme: o doente-escritor e o médico. A partir daqui, o realizador opta por uma narrativa em mosaico, onde episódios breves de pacientes acamados coexistem com conversas longas e reflexivas entre personagens-guia.

O primeiro mérito da obra é a coragem de tratar a morte sem subterfúgios melodramáticos. A câmara de Costa-Gavras mantém uma certa austeridade, evitando artifícios visuais que poderiam domesticar o tema; prefere o olhar próximo, quase documental, sobre gestos mínimos e intimistas. Esta escolha formal permite que as interpelações filosóficas do guião não se tornem abstracções teóricas, mas que se ancorem em rostos e vozes de indivíduos concretos. É uma escolha estética e ética: a representação da finitude não fica pela teoria, exige o contraste com o corpo que desvanece. O elenco trabalhou com economia de meios e grande precisão afectiva que acentuaram o lado humano. Podalydès, no papel do escritor confrontado com a própria possibilidade de morrer, encarna a inquietação intelectual que precisa de se ver frente a frente com o real; o franco-algeriano Kad Merad, como médico especialista em cuidados paliativos, traz uma mistura rara de humanismo e autoridade serena. As cenas curtas com pacientes permitem a cada actor desdobrar uma vida inteira em poucos minutos o que se torna, a um tempo, numa grandeza e numa fraqueza.  A opção pelo formato episódico, tão virtuosa na sua ambição de mostrar múltiplas maneiras de morrer, por vezes transforma-se em enumeração mecânica: a sucessão de casos diluiu a intensidade emocional, porque a narrativa não se prendeu, de forma profunda, a nenhuma biografia em particular num dilema centrífugo entre a vontade de reflectir sobre o tema em geral e o desejo de narrar histórias singulares.

Esta generalização do eu também se estendeu numa generalização da sociedade. No seu todo, os casos focados parecem pertencer a pequeníssima fatia da população: uma classe média-alta ou alta sem dificuldade de acesso aos melhores tratamentos médicos. Os hospitais são excelentes (demasiado cinematográficos: equipamento novo, decoração polida e até fachadas majestáticas) algo que, mesmo em França, é raro encontrar no serviço público; e os pacientes estão em quartos isolados não tendo, nos seus últimos momentos, que partilhar a sua dor com mais outros tantos. Os médicos e demais pessoal médico, não estão exaustos e dispõe de muito tempo e meios para se concentrarem nos seus cuidados. E os pacientes podem escolher ficar em casa com todos o apoio hospitalar o que, mesmo com ajudas estatais, é incomportável para maioria das famílias. Até uma trupe de ciganos ambulantes – com uns incongruentes trajes a parecer saídos de uma ilustração novecentista de “Notre Dame de Paris” de Victor Hugo – consegue aceder a todas estas benesses. Neste filme não há pobres, falta ou dificuldade de acesso aos tratamentos médicos, hospitais sub-financiados deteriorados ou à beira do colapso ou pessoal médico exaurido e mal pago. Mesmo quando África é mencionada tudo é positivo: os idosos são respeitados e valorizados e a morte é aceite de forma mais serena e até com alegria. Este último caso – de uma morte celebrada e alegre – é verdade no Senegal, mas o cineasta toma um continente inteiro, com uma miríade de povos e tribos, com crenças diferentes e até opostas, como um modelo único perigosamente perto do mito do bom selvagem de Rosseau.  Há uma “glamourização” da alteridade (africanos e etnia cigana) e uma omissão das classes baixas e dos excluídos: todos os pacientes têm uma família sendo que nenhum encontra a morte de forma isolada e desamparada.

Numa nota mais positiva há que notar que, no domínio político-ético, «O Último Suspiro» tem uma presença clara: não se limita a dramatizar, procura intervir no debate público. Costa-Gavras, cuja carreira é marcada pelo cinema de intervenção, aplica aqui o mesmo impulso a um tema que é, em si, profundamente político — o modo como se organiza o cuidado, o lugar da autonomia individual, a dignidade versus a instrumentalização da morte. O filme não entrega respostas fáceis; antes, propõe uma série de testemunhos e perguntas que enfatizam a importância dos cuidados paliativos enquanto espaço de dignidade e de presença. Em entrevistas, o realizador declarou a intenção de reabilitar a morte no discurso público e de sublinhar a necessidade de um acompanhamento humano que não se reduza a protocolos ou ideologias. Esse posicionamento confere ao filme uma tonicidade cívica que o distingue do mero melodrama íntimo. Porém ele próprio acaba por ser vitima das suas posições ideológicas que escamoteiam partes do que é ser humano — a espiritualidade e a transcendência. A religião surge apenas como uma coxa posição filosófica ou como mero pano de fundo sociológico, desprovida de verdade interior: não há lugar para credos ou ritos. Esta atitude não resulta de ignorância, mas de convicção. Costa-Gavras nunca escondeu a sua postura laica militante, herdeira directa do secularismo crítico que caracterizou a geração do pós-68. O problema é que, ao filmar a morte, essa posição transforma-se numa limitação artística e filosófica. Em vez de permitir que a dimensão religiosa do morrer se manifeste com a riqueza e ambiguidade que lhe são próprias, o filme reduz essa dimensão a, na melhor das hipóteses, uma posição cambiável a gosto e tão válida como as visões escatológicas dos gregos antigos. Todos os dilemas são resolvidos pela ética médica contemporânea ou pelo diálogo racional; tudo o que transcende o aqui e agora é suavemente empurrado para fora de campo. Essa recusa sistemática revela um preconceito profundo: a ideia, muito soixante-huitarde, de que a religião é sempre e somente instrumento de poder, opressão ou fuga. Em Costa-Gavras, que filmou com bravura as derivas autoritárias do catolicismo e a cumplicidade entre Igreja e poder em «Amen» (2002), essa suspeita transformou-se quase numa regra estética.

Do ponto de vista técnico, a mise-en-scène privilegia planos médios e próximos, um ritmo de montagem que respira e respeita os silêncios — revelando a maturidade de um cineasta que sabe quando não dizer nada. A montagem, assinada pelo próprio Costa-Gavras, realiza transições subtis que não artificializam as elipses temporais; a banda sonora, contida, sustenta a atmosfera sem impor sentimentalismo (com excepção da música inicial que quase fere os ouvidos). Em conjunto, fotografia e som constroem um espaço simultaneamente clínico e humano: não transformado num espectáculo teatralizado da doença, mas também sem frieza mecânica de ambiente exclusivamente hospitalizado ou técnico. Importa destacar ainda o lugar desta obra na filmografia de Costa-Gavras: um filme tardio, marcado por uma serenidade que antes não era dominante, onde a urgência política cede espaço a uma meditação ética e humana. Há um valor quase testamentário nesta escolha temática: o mestre do cinema dos ideais vira-se para a última grande questão íntima comum a todos nós. Mesmo quando o filme tropeça na sua estrutura episódica ou na tentação explicativa, mantém a coragem de falar abertamente sobre o acto de morrer, de devolver à cena pública a linguagem e o rosto daqueles que raramente são escutados.  «O Último Suspiro» é um filme sensível e ponderado, cuja maior força reside na humanidade das interpretações e na franqueza ética do seu ponto de vista. Poder-se-ia desejar maior densidade narrativa em algumas histórias, maior amplitude de visão das várias dimensões que fazem o Homem (mesmo que delas o realizador não partilhasse o seu valor) e menor discursividade em certos diálogos, mas essas reservas não apagam o mérito de uma obra que, com sobriedade e coragem, nos devolve a obrigação de pensar — e acompanhar — a morte como colectivo. Para quem estiver disposto a olhar sem pressa, o filme oferece uma experiência tanto cinematográfica como moral: um convite a conversar sobre o último fôlego com respeito e responsabilidade.

Título original: Le Dernier Souffle Título internacional: Last Breath Realização: Costa-Gavras Elenco: Denis Podalydès, Kad Merad, Marilyne Canto Duração: 97 min. França, 2024

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