Há nove anos atrás, quando «Minha Mãe» foi consagrado com o Prémio do Júri Ecumênico de Cannes e caminhou para a lista de darlings do Cahiers du Cinéma da década passada, o seu realizador, Nanni Moretti, reafirmou o seu lugar como um renovador das “comédias tristes” de Itália, numa tradição egressa do neorrealismo, sobretudo de Vittorio De Sica e Alberto Lattuada. Deu um passo largo pela estrada do melodrama com «Três Andares» (2021), que foi injustamente desprezado por parte da crítica, considerado “velho”. Mas com o bom humor (por vezes próximo da ironia, rente ao deboche) de «O Sol do Futuro», o diabrete – que manteve vivo o espírito de encantamento do cinema italiano, nos seus ensaios mais politizados – recupera a sua habilidade de arrebatar. Já choramos com ele em «O Quarto do Filho», Palma de Ouro de 2001. Mas a marca que ele deixa, com mais realce, é a do riso.

De volta num exercício anfíbio, em frente e por detrás das câmaras, Moretti aposta na picardia, sem perder a doçura, com direito a uma bofetada na cara da cultura do streaming. «Il Sol Dell’Avvenire» é o seu «8 ½», com ecos de Fellini, aquele Fellini de 1963, que se alquebrava diante das pessoas para narrar como se faz um filme.

Não é por acaso, que esta longa de regresso do diretor de «Il Caimano» (1996) é o melhor Moretti em duas décadas e celebra os seus 50 anos de carreira pelas vias do otimismo. É necessária uma genealogia para que se entenda (bem) o lugar de honra de «O Sol do Futuro» – e a sua trama sobre um cineasta às voltas com crises nos sets e na sua casa – na filmografia de um diretor sempre provocador. No ativo desde 1973, quando lançou «Paté de Bourgeois» e «La Sconfitta», Moretti arejou o alçapão em que o cinema italiano caiu na década de 1980, numa Idade Média mediática, quando Silvio Berlusconi (1936-2023) e outros parlamentares castigaram aquela coruscante produção audiovisual, a fim de valorizar mais a TV do que o grande ecrã.

Estamos a falar de uma terra de gigantes: Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini… Trata-se de uma terra próspera na seara dos filmes de género, com Dario Argento, Sergio Leone, Tonino Valerii, Sergio Corbucci e a dupla “Trinity”, Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos como Bud Spencer e Terence Hill. Na década de 1990, Giuseppe Tornatore (com «Cinema Paradiso») e Roberto Benigni (com «A Vida É Bela») souberam comunicar com as receitas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firme, como Bernardo Bertolucci (falecido em 2018), e o até hoje imparável Marco Bellocchio, responsável pela joia «Pugni In Tasca» (1965) e pelo enervante «O Traidor» (2019). Mas esses dois diretores são crias dos anos 1960. Moretti, não. Ele estreia-se nas longas em 1976, com «Io Sono Um Autarchico». É, portanto, cria de uma outra Itália, desmobilizada da era de ouro neorrealista e do “cinemanovismo” local. Mas, nem por isso, ele deixou de ser inquietante. Fez 30 filmes baseados numa máxima: “Eu não sou imparcial”.

Por isso mesmo, ele esculhamba com as plataformas de streaming em «O Sol do Futuro». Num desempenho de interpretação memorável, Moretti vive o realizador de verve socialista Giovanni. No auge da produção de um filme sobre a violência soviética contra a Hungria, nos anos 1950, vista sob a ética do Partido Comunista Italiano, Giovanni recebe golpes de onde menos espera, até da família. Além de sofrer com a falta de financiamento e com uma intervenção da Netflix (a quem ele trata com escárnio), ele pode perder o seu casamento, há muito tempo desgastado. A sua mulher e produtora, Paola (Margherita Buy), já não tem mais paz na relação e perdeu a paciência com as vaidades do seu companheiro. Nesse momento, facto e fábula se misturam. Dessa mescla, raia magia pura.

Título original: Il sol dell’avvenire Título internacional: A Brighter Tomorrow Realização: Nanni Moretti Elenco: Nanni Moretti, Margherita Buy, Silvio Orlando, Barbora Bobulova, Mathieu Amalric Duração: 95 min. Itália, 2023

https://vimeo.com/856808195

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