Mais uma vez Sorrentino repete as fórmulas dos seus anteriores filmes: mas que bem que o faz. É de bom grado que ouvimos o canto desta sereia e nos deixamos levar pela ofuscante Beleza, pela fugaz Juventude, pelas vicissitudes do Amor e Desejo e por Nápoles, uma cidade de contradições, vestida de gala mas com os pés sujos. Obsessão dos compositores barrocos que tantas óperas lhe dedicaram, Parthenope – “a da voz virginal”, dizem uns; “a da figura virginal”, dizem outros – foi a sereia que, não conseguindo seduzir Ulisses, se atira ao mar. Sendo metade mulher, metade pássaro (e não peixe como hoje se imagina) logo se afogou e as ondas terão levado o seu corpo para o local onde hoje se ergue Nápoles engendrando o mito da formação da cidade. Mais há para contar da história, como adiante veremos, mas primeiro vamos ao filme.
No Palazzo Donn’Anna, com vista para o mar de Posillipo, está para nascer uma menina que não terá um berço de ouro, outrossim um sumptuoso coche, vindo de Versalhes, para que viaje nos seus sonhos. Tem já um irmão: um pequeno Zéfiro que sopra o seu vento do Oeste e das Trevas. Como Afrodite, nasce no mar e torna-se numa mulher bela quase divina. Acompanhamos a sua vida, desde o primeiro momento em 1950 até à sua jubilação em 2023, ano que o clube de futebol de Nápoles conquista o título de campeão da Itália. A sua vida passa serena, num ritmo lento, indolente e indeciso com um único propósito, mais de sprezzatura que de sentimento: ter sempre a resposta certa. O chão que pisa será sempre o da sua cidade natal com uma excepção que se revelará trágica. Quase como num roteiro turístico, Sorrentino, filho da terra, leva-nos a passear pelos seus locais mais emblemáticos: a colunata da Galleria Umberto, a via San Carlo, Santa Lucia, o Castel dell’Ovo, o Marechiaro; e o passeio da Via Caracciolo onde ocorre uma das mais marcantes cenas, com um travo a la Fellini, quando uma elegante e algo anacrónica carruagem fúnebre, puxada por quatro emplumados cavalos negros, vê o seu cortejo impedido por um estranho entomo-veículo que desinfecta as ruas do perigo da Cólera. O realizador não se inibe, contudo, de nos mostrar os locais mais sombrios, como as vielas de Spaccanapoli, onde a miséria, o crime e a prostituição medram; se bem que com uma iluminação e composição a lembrar Caravaggio e uns toques de artifício (quem diria que alguidares de plástico azuis poderiam ser tão belos) para uma dignidade mais operática.

A sede histórica da Universidade Federico II é palco para os primeiros anos académicos da protagonista (Celeste Dalla Porta) onde pretende estudar – e antes mais saber o que é – Antropologia. A sua beleza, mas sobretudo verve, atiçam a curiosidade de um sorumbático professor (Silvio Orlando) que vê nela uma possível sucessora para o seu cargo. Já doutorada e sua assistente propõe-lhe um posto em Trento para que possa progredir na carreira. Mas tal implicaria abandonar Nápoles, algo que antes se revelou catastrófico. Voltemos atrás no filme e de regresso ao mito. [Atenção: spoilers] Na flor da juventude é instigada pelo seu irmão (Daniele Rienzo) a visitar Capri. A beleza napolitana oprimia-o: “É impossível ser feliz no lugar mais belo do Mundo.” Nesse interregno, na ilha do Mar Tirreno, irão acontecer os momentos mais marcantes da vida da jovem. Conhece o desencantado e alcoólico escritor John Cheever (Gary Oldman) que, à laia de oráculo, lhe mostra o poder da sua beleza (“Beauty is like War. It opens doors”) mas adverte para o quão fugaz é a juventude. É abordada por uma agente que lhe incute o sonho de ser actriz e, porque Eros e Thanatos muitas vezes andam de mãos dadas, descobre o amor e a morte a um tempo. Comecemos pelo amor: primeiro um milionário cerca-a com o seu helicóptero, qual ave de rapina, tentando-a conquistar por todos os métodos (charme, dinheiro,…) e expõe-a ao lado mais negativo da masculinidade quando é rejeitado; depois a heroína aproxima-se de Cheever, encantada pelo seu intelecto, mas é a sua vez de conhecer a rejeição; por fim, o acto consumado com o amigo de infância (Dario Aita) que acompanha os irmãos à ilha. Mas havia ainda mais um amor, atro na sua natureza: o do seu irmão. Sendo a relação incestuosa impossível, também seria a vida e ele “deixa-se cair”.
Para os clássicos, Parthenope tinha uma complexidade simbólica que seguramente Sorrentino conhecia e aqui soube explorar. Era um símbolo da aflição e do luto: vemos como a perda do irmão a irá perseguir anestesiando-a emocionalmente, impedindo-a de voltar a amar. Os seus pais devastados pela morte do filho tombam no abandono e na acédia. Era símbolo de infertilidade – a sereia que encanta os homens para o seu amor mortífero e estéril. O tema da maternidade surge sempre como algo negativo: O pai confessa-lhe que apenas um neto o salvaria, mas ela nega-se; quando engravida, sem esperar, faz um aborto ilegal; uma aluna grávida a quem é falseado o acesso à universidade para que não renuncie à carreira em prol da vida familiar; as mães atoladas de filhos em casas miseráveis do tamanho de armários; e a cama cheia de bonecas da extravagante professora de teatro Flora Malva (Isabella Ferrari). Era, ainda, símbolo do lado negro da arte e da beleza. Parthenope, e as suas duas irmãs Ligeia e Lacósia, arrogantemente desafiaram as Musas para um concurso de canto. Os Deuses julgaram em favor das Musas e, pela sua húbris, as sereias foram desfiguradas. A protagonista é aconselhada a ser actriz apenas pela sua beleza e será a esquartejada Flora, que esconde a cara por trás de véus e vapores; e a alopécica Diva Greta Cool (Luisa Raniere) a espelharem os horrores do mundo do espetáculo e o destino dos que sucumbem aos seus desejos e às tentações do desconhecido. Uma vida anónima e anódina, no seu departamento de Antropologia, acaba por melhor lhe servir quando os fulgores da juventude se extinguem.

A par da cidade e do mito, Sorrentino volta a revisitar o seu tema de eleição: a decadência do Catolicismo. Uma decadência não só nos seus valores, como no seu tempo. As cenas passadas no interior da Catedral de Nápoles e da Certosa di San Martino são de uma beleza incendiária e sufocante. Será difícil esquecer os momentos entre Parthenope e o priápico cardeal (Peppe Lanzeta), onde a actriz enverga um sumptuoso vestido de pedrarias Yves Saint Laurent inspirado no tesouro de São Januário; ou os momentos de histeria/devoção na realização do célebre milagre anual da liquidificação do sangue do santo. O cuidado do realizador italiano na construção da imagem atinge aqui o seu esplendor em pormenores, por vezes subtis, como o dos andaimes que acrescentam um toque de eminência de catástrofe e destruição à iminência da catedral gótica. Quanto ao elenco, a escolha parece ter sido muito acertada com excepção – e aqui arrisco-me a ser cruel – da protagonista. A iniciante Celleste dalla Porta revelou os seus dotes de representação porém a personagem pedia algo mais. Do país que nos deu das mais belas actrizes custa ver em Celleste a diva que enlouquece os homens quando passa. É, seguramente, uma mulher bonita, mas não é bela. Stefania Sandrelli, que faz o papel da protagonista envelhecida, também não convence e talvez tenha sido escolhida por, de facto, ter tido em nova muitas semelhanças físicas com Celleste. Reparo à parte – que talvez seja injusto-, cabe a Stefania a cena final e a influência de Fellini parece voltar fechando um ciclo: depois do carro fúnebre e do carro insecto, um festivo carro alegórico irrompe pela noite deserta como uma chama que ilumina o futuro. Pathernope, sozinha, rejubila sorridente. Terá, por fim, encontrado a resposta certa?
Título original: Parthenope Realização: Paolo Sorrentino Elenco: Celeste Dalla Porta, Silvio Orlando, Dario Aita, Gary Oldman, Stefania Sandrelli, Daniele Rienzo Duração: 136 min. Itália/França, 2024
Fotos: © Gianni Fiorito