«O Filho de Mil Homens» é um daqueles filmes que estreiam — neste caso, em exclusivo na Netflix — já com um selo de importância antes sequer de começarem a ser vistos. É de facto o caso desta adaptação do realizador brasileiro Daniel Rezende — que foi o montador de «Cidade de Deus» — ao romance de Valter Hugo Mãe. Com Rodrigo Santoro como pescador melancólico à frente do barco, o filme entra em cena carregado de expectativas: autor de culto, realizador com credenciais, Netflix à espreita e o próprio escritor a dizer em entrevistas que isto é “filme do ano, filme da década”. Pronto, a fasquia ficou no tecto.
A história é simples, e ainda bem: Crisóstomo (Santoro), quarenta anos, pescador solitário, vive com o buraco de não ter um filho, aquele vazio básico de quem gostava de cuidar de alguém e não tem a quem. Entra Camilo (Miguel Martines), um miúdo órfão, e a coisa muda de figura. À volta deles surgem Isaura (Rebeca Jamir), mulher varrida para a margem; Antonino (Johnny Massaro), “maricas” aos olhos da aldeia; e Francisca (Juliana Caldas), pequena e gigante na fome de amor. Todos expulsos de qualquer família “normal”, todos a tentar perceber se ainda há lugar para eles na mesa de alguém.
Rezende faz uma escolha clara: troca a densidade da prosa de Mãe por imagens muito limpas, muito bonitas, às vezes até bonitas demais. A fotografia de Azul Serra transforma a praia num estado de espírito: vento que corta, luz sobre o rosto de Santoro, mar a rugir ao fundo. Há planos que parecem feitos de propósito para trailer, cartaz e story de Instagram. Nada contra o post, mas às tantas apetece pedir: menos postal, mais carne.
O arranque é lento, quase teimoso. A rotina de Crisóstomo, o silêncio, o cansaço, tudo vem em modo maré baixa. Muita gente vai achar que “não acontece nada”. E, de facto, não acontece muito, mas é um nada programado: a solidão precisa de tempo em campo. O problema é que, quando chegam Camilo e o resto da trupe, o filme carrega no acelerador. De repente, as vidas cruzam-se, a casa enche-se, a narrativa dispara… e nós mal temos tempo para respirar com cada um dos personagens. O livro deixava-nos habitar estas figuras; o filme, às vezes, apresenta-as e salta logo para a cena seguinte.
Onde a coisa ganha outra espessura é no modo como filma o afecto masculino. Crisóstomo não é o herói viril, é um tipo cansado que quer cuidar. A relação com Camilo não cheira a moralismo barato, cheira a disponibilidade. Antonino não é a piada fácil sobre “o diferente”: é um corpo sensível que exige o direito ao lugar. E o filme nunca cai na caricatura dos vilões unidimensionais: o que há ali é gente danificada a tentar não repetir a violência que recebeu.
Falta-lhe, claro, a música da língua de Valter Hugo Mãe, esse português torto, oral, meio bíblico, meio taberneiro, que em cinema sobra ou cai para a voice-over. Rezende resolve com alguma narração de Zézé Motta, muitos silêncios e confiança na cara dos actores. Nem sempre chega, mas nunca é vergonha.
Resultado? «O Filho de Mil Homens» é um filme irregular, por vezes vaidoso da sua própria beleza, mas com um coração teimoso no sítio certo. Quando aquelas quatro almas — o pescador, o órfão, a mulher em fuga e o homem “maricas” — se sentam naquela casa de madeira a tentar não se magoar mais, percebe-se que, apesar dos tiques, o filme acerta numa coisa simples e escandalosa: família é isto. E, num mundo viciado em cinismo, um filme grande, popular, que ainda acredita na bondade sem ser completamente idiota… já é meio milagre.
Título Original: O Filho dos Mil Homens Realização: Daniel Rezendes Elenco: Rodrigo Santoro, Miguel Martines, Rebeca Jamir, Johnny Massaro, Juliana Caldas Origem: Brasil Duração: 125 minutos Ano: 2025

