Era uma vez um milionário com um sonho por realizar: transformar um vasto espaço natural que circundava a sua mansão no Estado da Pensilvânia num ponto de encontro comunitário onde se perpetuasse a memória da falecida mãe no usufruto “democrático” de uma biblioteca, de um ginásio, de uma sala de espectáculos e, por imposição local da ideologia e religião dominantes (contrariando a sua fé protestante), de uma capela católica, apostólica e romana. Para que a sua visão e este legado monumental se pudesse concretizar, Harry Lee Van Buren (assim se chama o industrial do aço que enriquecera com a Marinha dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, interpretado no filme por Guy Pearce) precisava de um arquitecto com experiência, ousado nas suas propostas e de igual espírito visionário. Mais, precisava que essa pessoa fosse manipulável sem disso se dar conta, criando as condições para dele obter, através da cumplicidade sincera ou não com os desígnios e competência profissional do seu contratado, uma simpatia feita de submissão a um conjunto de regras do jogo onde prevalecia a lei do mais forte, a saber, o capitalismo financeiro e a sua hierarquia plutocrática. E quem outro senão o judeu húngaro, sobrevivente do holocausto, fugido do nazi-fascismo e praticamente acabado de chegar aos EUA em busca do “American dream” para ocupar esse lugar, podemos dizer, reciprocamente desejado? O seu nome, Laszlo Toth (Adrien Brody). Muitos outros arquitectos estariam talvez nas mesmas condições, mas as voltas do destino irão constituir a inegável matéria-prima e a força motriz da narrativa, que se irá prolongar por dois grandes actos e múltiplas sequências ao longo de duzentos e quinze minutos, literalmente interrompidos por um intervalo de quinze minutos. E a hora será marcada para que o encontro entre estes dois homens se concretize, cada um na sua frente social, assumindo a partir de então os papéis protagonistas na longa-metragem «The Brutalist» («O Brutalista», 2024), realizada por Brady Corbet.

Será importante referir aqui que “Brutalista” não se refere a qualquer manifestação de violência, nem no filme se apelida de violento quem quer que seja, pelo menos até bem perto do final. Trata-se, isso sim, de um estilo que surgiu em obras de arquitectura no início do Século XX e que de uma forma muito simplificada se pode caracterizar pelo emprego do cimento em estado bruto e de outros materiais, sem disfarces. Foi profusamente utilizado com qualidade, e sobretudo quantidade, entre as décadas de cinquenta e sessenta. Em Portugal, parem e olhem com olhos de ver, por exemplo, quando passarem pela sede da Fundação Calouste Gulbenkian. Não obstante, o filme procurou para os devidos efeitos manter uma certa ambiguidade nos ecos produzidos por esse vocábulo, porque violentíssima será a maneira como nos introduz a personagem de Laszlo Toth na sua chegada a Nova Iorque. Sequência mergulhada numa vertigem de sombras onde por fim se descobre contra o azul do céu a imagem oblíqua, propositadamente desequilibrada, da Estátua da Liberdade. Na confusão e na obscuridade de uma amálgama de corpos e vozes humanas, o que vemos não está longe do que já vimos noutras obras quando nos enquadram os horrores do extermínio praticado pelos nazis, quer nos campos de concentração quer a caminho dos mesmos nos infames comboios da morte. Deste modo se dá o salto, simultaneamente assombrado e redentor, entre a Europa e o Novo Mundo. Só por essa primeira sequência damos conta de que há um autor por detrás da objectiva que não aposta numa visão cor-de-rosa do imigrante, do refugiado que, desesperado, se agarra a qualquer coisa, nem que seja um pedaço de família com quem logo a seguir se vai desentender. Porque ser imigrante não significa aceitar que o segreguem para segundo plano nem que lhe cuspam na cara quando as coisas correm mal. Não requer que se viva apenas da benevolência ou caridade alheia, mesmo quando ela se manifesta com alguma sinceridade, neste caso misturada com alguma fragilidade de carácter no plano familiar.

Para o arquitecto, a vida só dará uma guinada para melhor quando ele se muda para os aposentos que lhe arranjaram na mansão do plutocrata. Este, por sua vez, vai anunciar aos seus mais próximos que Laszlo Toth será o homem, o profissional e o artista a quem vai confiar o seu projecto visionário. Tudo parece bater certo, aliás, após um primeiro e agreste encontro devido a um equívoco gerado por uma surpresa urdida pelos filhos de Harry Van Buren, perfeitos representantes da classe ociosa, que encomendaram a renovação do salão de leitura do pai sem ele ser consultado. Furioso com o inesperado resultado, o industrial acabará por valorizá-lo numa reviravolta de cento e oitenta graus, porque o estímulo intelectual que experimenta com Laszlo Toth só encontra paralelo na constatação de que os meios bem pensantes da época colocavam nos píncaros a obra anterior do arquitecto formado na Bauhaus, mítica escola de arte e design alemã, a que juntaram elogios pela intervenção arquitectural no dito salão que passou a ser uma biblioteca com subtis e luminosos apontamentos modernistas. Na verdade, muitas e repetidas vezes se dará o confronto entre a superioridade intelectual de um “pobre” imigrante (que não obstante possui uma riqueza maior na sua formação e posicionamento de vanguarda) e a estreita e muito mais conservadora percepção da realidade por parte dos seus ricos interlocutores. Essas diferenças entre o refinamento europeu, feito aqui e além de muitos sacrifícios, e o lado prático da economia e do lucro ao jeito americano, que exige abandonar soluções mais arrojadas a favor de outras mais conservadoras e de menor valor estético, serão o ponto fulcral de numerosas contradições, que irão permanecer latentes na mente do espectador de cada vez que se aproxima uma borrasca de emoções ou de um controlado número de conflitos dramáticos. Mas nada irá superar em violência o infernal episódio nas jazidas de Carrara, onde Harry e Laszlo cometem o pecado original que os fará serem expulsos do Paraíso, mesmo do falso Paraíso de uma relativa e ilusória liberdade onde uma das partes, a do arquitecto, nunca se sentiu livre, nem quando a sua mulher e afilhada a ele se juntaram. Na intimidade do lar, Laszlo desabafa: “Não nos querem aqui”, referindo-se aos judeus, embora pudesse dizer o mesmo dos imigrantes e dos negros e em particular do seu amigo afro-americano com quem partilha inúmeras situações difíceis de conceber num quadro existencial e ideológico da América WASP (White Anglo-Saxon Protestant). Basta recordar que a luta pelos direitos civis e pela integração racial estava prestes a explodir com inusitada violência na época a que se refere a acção. Mas a sua militância sobrevoa outros horizontes, a sua guerra incide na luta por manter a sua obra e a sua arte nas proporções que desde cedo defendeu. Dessa vontade indómita de ultrapassar obstáculos resulta o poder da personagem defendida por Adrien Brody, e, no entanto, não ficaria mal ao realizador insuflar um pouco mais de energia a uma personagem que parecia soçobrar mas no fundo era apenas um vulcão adormecido. E as provações que sofrera enquanto prisioneiro nos campos de concentração, a repressão da sua identidade e individualidade, explicam em parte a sua dependência de drogas, o vício da heroína que constantemente alimenta e que o vai “adormecendo” na sua raiva reprimida por uma vida interrompida. Mesmo a recuperação da sua actividade e um renovado conforto material não chegam para colmatar as mil e uma barreiras entre o ser ou não ser húngaro, ser ou não ser americano, ser ou não ser judeu. Falta-lhe constantemente o conforto espiritual, o momento de apagar da memória os seus fantasmas. Também aqui o realizador e a co-argumentista, Mona Fastvold, podiam ir mais longe, e para isso bastava (digo eu) pegar na personagem da mulher de Laszlo e dar-lhe mais minutos e maior relevância, numa palavra, mais poder, como irá acontecer nos derradeiros vinte minutos de «O Brutalista». Seja como for, esta obra rodada em Vistavision (com uma “Overture” meteórica e algo inútil e uma “Intermission” que faz de conta ser um intervalo ao modo de outras épocas mas para o qual não consigo vislumbrar uma sólida razão de ser), apesar destes pormenores e de uns quantos pontos que mereciam maior impacto narrativo, apresenta-se como um dos melhores filmes de 2024.

No Festival de Veneza recebeu o Leão de Prata para a Melhor Realização. Pessoalmente, se existisse um outro Leão de qualquer metal precioso para guarnecer o palmarés, atribuía-o aos responsáveis pela direcção artística pela forma como criaram as atmosferas com apontamentos mínimos, diria até em alguns casos, brutalistas, sem nada a mais nem a menos. Essa sensação de despojamento e precisão permite ao espectador “repousar” o olhar sobre os actores, ouvir o que eles dizem, participar nos acontecimentos sem ser esmagado pelo décor. Esse seria o meu Leão de Ouro, o merecido prémio para a cenografia. Finalmente, outros dois Leões iriam inteirinhos e a rugir para a fabulosa banda sonora musical, e ainda para a montagem e misturas de som. Num filme de quatro, estas partes fulcrais da sua estrutura valem bem as cinco estrelas da pontuação máxima.        

Título original: The Brutalist Realização: Brady Corbet Elenco: Adrien Brody, Guy Pearce, Felicity Jones, Joe Alwyn, Isaach De Bankolé, Alessandro Nivola Duração: 214 min. EUA, Reino Unido, Canadá, 2024

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