Não se fala escancaradamente sobre os Anos de Chumbo (referência sul-americana aos idos de 1964 a 1985, com lideranças fardadas nas pátrias daquele continente) em ponto algum de «O Agente Secreto», embora a sua trama se passe na era do general Ernesto Geisel (1907-1996) no controlo do Brasil… em 1977. O máximo que se discute é a sorte de um ex-soldado que foi afastado pelo excesso de maldade e virou matador a soldo: o crudelíssimo Augusto Borba (papel de Roney Vilela). O foco do magistral estudo de Kleber Mendonça Filho sobre a era das trevas que se abateu na sua nação com a tomada de Brasília (e do resto) por oficiais são arquivos. Uma pessoa sem identidade não existe. Num país de armas e corrupção, apagar alguém elimina registos de patentes da Ciência. Essa é a sina de Marcelo, personagem de Wagner Moura, que era investigador numa universidade. Nos dias em que o mundo desfruta o fim da Nova Hollywood, pós «Tubarão» (1975), ele foge, em prol de abandonar a sua vida… e a do seu filho, um miúdo. Esse enredo ganhou ainda mais força depois do Óscar dado a «Ainda Estou Aqui». O tema está em ebulição.    

Estonteante como thriller e como análise da burocracia, «O Agente Secreto» se une ao marcante «Ainda Estou Aqui» para aplacar uma carência histórica do cinema brasileiro em relação a filmes de ficção que narrem as brutalidades do Estado cometidas quando líderes guerreiros como Médici tomaram o governo do seu país e suspenderam a democracia. Cada filme o faz à sua maneira. O de Kleber tem erotismo, sangue, tripas, fantasia e muita referência ao cult marinho de Spielberg, com Roy Scheider, Robert Shaw e Richard Dreyfus. Nota-se ainda a presença de Lina Wertmüller num cartaz lindo do seu «Pasqualino Sete Belezas». A direção de arte é (como via de regra em KMF) um primor.   

O trabalho de Thales Junqueira na reconstrução visual de uma década de retrocesso é essencial para que se reviva uma Idade Média de boina e arma no coldre. Os argentinos viveram situação similar, igualmente sangrenta, e a exorcizaram, no cinema, com «A História Oficial» [«La historia oficial»], de 1985, e «Argentina, 1985», de 2022, com direito a outros sucessos no caminho. O Brasil reagiu cinematograficamente ao avanço dos comandantes de farda verde oliva no ato do golpe com «O Desafio» (1965), de Paulo Cézar Saraceni (1933-2012). Uma nova reação de peso brotaria das telas em 1982, com direito a uma indicação ao Urso de Ouro de Berlim e 1,3 milhões de bilhetes vendidos no circuito comercial: «Pra Frente, Brasil», de Roberto Farias (1932-2018). Cerca de 15 anos depois, Bruno Barreto tomou as telas de assalto com o já citado «O Que É Isso, Companheiro?». Além isso, desde os anos 1980, a realizadora Lucia Murat fez dos Anos de Chumbo o assunto dos seus dramas, incluindo «Quase 2 Irmãos» (2005) e o recente «O Mensageiro» (2023), e o ator Wagner Moura arriscou-se (bem) na realização relembrando o período em «Marighella» (2019). No documentário, «Cabra Marcada Para Morrer», de Eduardo Coutinho (1933-2014), e toda a obra de Silvio Da-Rin («Hécules 56») expuseram toda a violência das Forças Armadas nos 21 anos em que elas governaram um dos maiores territórios da América do Sul. Apesar destas escolhas, faltava uma catarse… sobretudo de retumbância popular, que fosse capaz de reverberar pelo mundo. Coube a Walter Salles (do belíssimo «Abril Despedaçado») resolver a questão com seu «Ainda Estou Aqui». Agora é a vez de Kleber abrir novas trincheiras e desovar traumas. Que Cannes reconheça o seu feito e seu talento. «O Agente Secreto» é um colosso latino-americano, com brasilidade até a medula e tensão digna de um «Os Incorruptíveis Contra a Droga». 

ARTIGOS RELACIONADOS
Jafar Panahi ascende ao panteão da autoralidade – Cannes 2025

Desde 1939, quando uma passadeira vermelha abriu terreno para as estrelas de quilate global na Côte d'Azur, a tarefa de Ler +

Postal de Cannes – dia 24 de Maio

É bom podermos ver e partilhar o sorriso de Jafar Panahi no pequeno filme da “photo call” [ ©Manon_Boyer/FDC ] Ler +

Joachim Trier, um talento mais forte do que as bombas – Cannes 2025

Assegurado para alguns territórios pela plataforma MUBI, «Valor Sentimental» («Sentimental Value», concorrente da Noruega à Palma de Ouro, é a Ler +

Postal de Cannes – 21 de maio

Eis uma imagem, ou melhor, um conjunto de três imagens a que não podemos deixar de reconhecer um certo tom Ler +

Postal de Cannes – 20 de maio

Subitamente, entre surpresas e desilusões, filmes empolgantes e filmes que já não têm cinema dentro deles, os acasos da programação Ler +

Please enable JavaScript in your browser to complete this form.

Vais receber informação sobre
futuros passatempos.