Há uma evidente alusão à «Persona» (1966) de Bergman e a «As Nuvens de Sils Maria» (2014) de Olivier Assayas, tanto no confronto de identidades quanto na essência performativa. Contudo, «May December: Segredos de Um Escândalo», a recente colaboração entre Todd Haynes e a notável atriz Julianne Moore, inesperadamente evoca um dos últimos trabalhos de Akira Kurosawa, «Kagemusha» (1980). Neste épico kurosaweano, posicionado na sua fase pós-consagração, evidenciamos a transformação de um sósia ao seu falecido Senhor de Guerra falecido. Os pertencentes ao círculo próximo do anterior feudatário constatam essas semelhanças salientes e confundíveis da “cópia” ao original, como se tornar mais autêntico que o autêntico Senhor. Mais tarde, somos levados a esse duplo-sombra perseguido pelo vulto do seu defunto mestre, numa perseguição onírica, metaforizando a instabilidade e mutabilidade da identidade, que não é mais que uma ‘persona’ em constante manutenção.

Em «May December: Segredos de Um Escândalo», Natalie Portman assume o papel de Elizabeth Berry, uma atriz de renome do pequeno ecrã, imersa num novo e ambicioso telefilme que adapta a controversa história de Gracie Atherton-Yu (Julianne Moore). Gracie foi uma professora condenada por um relacionamento amoroso com um jovem de 13 anos nos anos 90, tornando-se numa figura mediática de tabloide. Elizabeth estuda meticulosamente Gracie, agora instalada e vivendo um matrimónio, aparentemente feliz, com o seu antigo amante jovial (Charles Melton), mimetizando-a para desvendar a sua psicologia, idiossincrasias e identidade, até mesmo invadindo momentos íntimos.

A conexão entre o filme de Haynes e o de Kurosawa reside na transformação da(o) “sósia” até atingir a réplica ambígua, chegando a transgredi-la. Aqui, a simulação do sexo in local, o ato ‘pecaminoso’ que dá mote à “novela”, testemunhamos a fuga à crisálida por parte de Natalie Portman (o filme faz uso de um sub-subenredo de borboletas monarcas e as suas diferentes metamorfoses como imagem-guia), a sua tomada de posição, ou diria mesmo superação, a criação de uma nova autenticidade, de uma nova ‘realidade’. A “kagemusha”, a ‘sombra’, aproxima-se do genuíno, desafiando a essência estabelecida pela ‘persona original’.

Todd Haynes desvia-se dos seus filmes anteriores, na sua abordagem próxima de cineastas clássicos como Douglas Sirk (veja-se «Longe do Paraíso», de 2002) ou David Lean (através de «Carol», de 2015). «May December» apronta-se num lado pindérico telenovelesco, com a abertura em jeito do ‘jingle’ de «O Mensageiro» («The Go-Between», 1971) de Joseph Losey e os constantes dramas sumarentos com que expõe como rímel de um confronto entre verité e vanitas. Porém, é na sua teoria que «May December» se resume a um interessantíssimo ensaio.

Título original: May December Realização: Todd Haynes Elenco: Natalie Portman, Julianne Moore, Charles Melton Duração: 117 min. EUA, 2023

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº101, Inverno 2023]

https://www.youtube.com/watch?v=0Qlu8bvCSxU

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