Page 178 - Revista Metropolis nº122
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espancado mas, nas suas incursões pelo Sul dos EUA, conhecer um homem de espírito livre que sacrificou
receava poder ser morto. Deste modo, o simples acto parte da sua liberdade material para nos dar a conhecer
de apontar a objectiva era visto como uma ameaça. uma realidade que merecia e merece ser desvendada
Na verdade uma arma de protesto que registava uma aos olhos de quem se interessa por estas matérias da
realidade controversa cujo manuseamento implicava arte e da vida. Testemunho maior, mas não único,
um certo risco. Na prática, sentiu na pele (negra) que o do seu legado (cerca de sessenta mil negativos) foi o
denominado “sonho americano”, onde supostamente espólio encontrado de forma organizada e em boas
se vivia em liberdade e democracia, afinal não era um condições nos cofres bancários suecos. De certo modo,
bem universal. Muitos americanos viviam como os podemos considerar este acontecimento como o
seus compatriotas sul-africanos, os níveis de pobreza milagre da ressurreição de uma obra e o renascer da
eram mais ou menos os mesmos, a discriminação memória de um homem que morreu ainda jovem, com
racial atingia patamares não muito diversos, em certos dificuldades financeiras e doente, aos quarenta e nove
casos o perfil de segregação não era menor e o conceito anos. Estas fotografias, muitas nunca antes vistas,
institucionalizado do whites only estava disseminado são uma das preciosas matérias-primas que serviram
pelos quatro cantos das cidades e a sua não de base ao documentário de Raoul Peck. Filme que
observância era considerada um crime, uma subversão merece, sem sombra de dúvida, nota máxima e uma
da ordem que se queria manter, no fundo uma outra visita, militante ou não, a um qualquer grande ecrã
forma de apartheid. Todavia, na sua crescente demanda onde se encontre disponível.
fotográfica, Ernest Cole não desistiu de encontrar o
reverso da medalha e nunca deixou de reflectir sobre as No Festival de Cannes de 2024, «Ernest Cole: Lost
contradições de um país em que, excepto no Sul racista, and Found», produção franco-americana, recebeu o
era permitido o convívio natural entre brancos e prémio L’Oeil D’Or para Melhor Documentário, ex-
negros, sem ignorar as questões mais controversas que aequo com a produção egípcia, «Rafaat Einy ll Sama»,
recaíam em geral no plano do relacionamento sexual. de Nada Riyadh et Ayman El Amir.
Em suma, «Ernest Cole: Perdido e Achado» dá-nos a JOÃO GARÇÃO BORGES
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