Janela Indiscreta

JANELA INDISCRETA

JANELA INDISCRETA

Sete anos antes de George Orwell mostrar ao mundo as vicissitudes de um irmão mais velho, já Cornell Woolrich se debruçava sobre os encantos da quebra de privacidade. Com o avanço galopante da tecnologia ao longo de todo o século XX, o planeta em que vivemos sofreu diversas alterações. Dentre as quais, e como viria a ser postulado anos mais tarde por Marshall McLuhan, o seu encolhimento. Cedo se percebeu que progresso e desenvolvimento seriam sinónimo de uma contracção generalizada, e que o globo caminhava a passos largos para uma aldeia global. Agora, se o planeta se transforma numa aldeia, o que não será a aldeia em si mesmo? O que não será o bairro? A rua? No fundo, o que será o prédio do lado? É esse o brilhante ponto de partida para o mais bem-sucedido exercício de entranhas reviradas à moda de Hitchcock, numa mescla perfeita de entretenimento, intriga e recalcamentos postos a descoberto. Ao pegar na peça de Woolrich, o mestre do suspense encontrou a desculpa perfeita, se é que precisava dela, para exponenciar todo o seu talento ao serviço de um voyeurismo metafórico que a tela jamais tinha visto até então, e sobre o qual nunca mais voltou a pôr os olhos desde aí. No centro da trama, um tal fotógrafo de nome L.B. “Jeff” Jeffries (James Stewart), atrapalhado temporariamente numa cadeira de rodas em virtude de uma pena partida. Lisa, uma modelo de tirar o fôlego a qualquer um (Grace Kelly num dos seus últimos papéis), é a namorada à procura de algo mais. Stella (Thelma Ritter) é a enfermeira torcida e apostada em encarnar a voz da sanidade. Face às limitações de locomoção, Jeff pouco mais pode extrair do seu quotidiano do que a mera observação daqueles que o rodeiam. Constatação feita por Stella, quando afirma que a sociedade se tornou num conjunto de peeping toms, numa clara alusão ao vício de que Jeff começa a padecer à medida que aumenta a relutância em afastar-se da janela. Contudo, se Lisa e Stella se apressavam em alterar essa realidade, e em chamar Jeff para o “mundo real”, rapidamente mudam de opinião quando Jeff começa a suspeitar de que um dos seus vizinhos (Raymond Burr) assassinou a esposa. O mistério agarra diferenciadamente a atenção do trio, mas com resultados semelhantes em todos os eles. Em suma, o balanço do que se ganha com o captado através do vidro, versus o que se perde debaixo do nariz. Exemplo acabado desta máxima está patente no lamento de Jeff face à inexistência de um romance completo na sua vida, quando diante de si está a mulher que toda e qualquer lente fotográfica gostaria de ver do outro lado. Seja como for, à medida que a investigação à distância do repórter fotográfico avança, avançam também as histórias dos outros vizinhos. Dos suspeitos que nada suspeitam do que se passa do outro lado da janela da frente. No seu todo, é possível apreciar a mensagem da obra relativamente à experiencia cinematográfica – do espectador sentado numa sala escura submerso na vida de terceiros. Contudo, é precisamente esse fascínio pelo comportamento alheio que confere ao título uma dimensão de thriller que o separa de tantos filmes que se ocuparam a namorar o mesmo tema. Basta recordar a cena em que Lisa visita a casa do suspeito. Sem poder interceder, Jeff limita-se a olhar com o coração nas mãos e a implorar ansiosamente num suspiro para que a sua namorada abandone o apartamento, tal e qual um membro da audiência num filme de terror. No fundo, um prolongamento de quem, deste lado do ecrã, vê o mesmo que Jeff. Certo é que Hitchcock dedicou muito da sua carreira à provocação das tendências voyeurísticas dos seus espectadores. E o mestre sabia, melhor do que qualquer outro cineasta, como estimular essas mesmas tendências. A Janela Indiscreta é o melhor exemplo das suas capacidades neste domínio, e em nenhum outro produto sentimos de igual modo o desconforto dos cordelinhos que Hitchcock puxa sobre nós. Há quem diga que começou a tomar duche de maneira diferente depois de ter visto Psycho. Da minha parte, confesso que passei a ter todos os meus vizinhos debaixo de olho desde que vi esta pérola. Bruno Ramos

Título original: Rear Window Realização: Alfred Hitchcock Elenco: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey, Raymond Burr Duração: 112 min EUA, 1954

[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº6, Fevereiro 2013]