Quando Viggo Mortensen rodou «Pela Estrada Fora» (2012), de Walter Salles, no papel do editor Old Bull Lee, que tem William S. Burroughs (1914-1997) como inspiração, o ator orgulhava-se de ter adquirido, num alfarrabista, pistolas velhas que eram do poeta, de quem decorou alguns dos mais afiados versos da língua inglesa. Há uma estrofe de Burroughs que define «Falling – Um Homem Só» na perfeição:

“Vagabundos agarram suas casas imaginárias
Um comboio perdido apita vago e abafado
No apartamento, à noite, um gosto d’água
Luz da manhã em carne láctea
Coceira irritante mão fantasma
Triste como a morte dos macacos
Teu pai uma estrela cadente
Osso de cristal no ar fino
Céu noturno
Dispersão e vazio.”

Exibido em janeiro de 2020 em Sundance, teve o selo de Cannes e foi elogiado em Toronto, o périplo de John (Viggo Mortensen) rumo ao amor de Willis (Lance Henriksen) passou com pompas, em setembro de 2020, no 68ª Festival de San Sebastián, configurando-se como a mais delicada longa-metragem do evento espanhol. E a sua exibição fez parte de uma homenagem a Viggo, que foi laureado com o Troféu Donostia pelo conjunto da sua trajetória, dos anos 1980 para cá. Uma trajetória que passou pela América do Sul, onde o nova-iorquino de origem escandinava cresceu, entre a Argentina e a Venezuela. Ele buscou parcerias com cineastas como Ana Piterbag («Todos Temos Um Plano»), Vicente Amorim («Um Homem Bom»), Walter Salles («On The Road») e Lisandro Alonso («Jauja»). Com eles, teve diferentes experiências do realismo e da fabulação, duas instâncias da essência do verbo “narrar” que se confluem em «Falling». Cronenberg, que redefiniu o trajeto profissional de Viggo ao escalá-lo em «Uma História de Violência» (2005), faz um cameo, como o proctologista que cuida de Willis.

Devastadora, a ideia de algo que se dispersa em nós guiou Viggo Mortensen no seu primeiro filme como realizador. É um drama sobre os espinhos da paternidade, no ponto de vista de um filho amoroso e no ponto de vista de um pai selvagem. Depois de três nomeações ao Oscar, pelo seu modo febril de interpretar – obtidas com «Promessas Perigosas», de 2007; «Capitão Fantástico», de 2016; e «Green Book », de 2018 – e depois de ter virado uma lenda pop como Aragorn, em O Senhor dos Anéis, Viggo emprega as suas vivências num drama que passa pelas trincheiras do ódio para se firmar como um estudo sobre a arte de saber envelhecer. O personagem central é o rancheiro Willis, que na juventude é defendido com fúria pelo ator sueco Sverrir Gudnason. Devotado ao seu rancho, tornando-se mais tenso com a chegada dos cabelos grisalhos, sendo confiado o papel ao ator Lance Henriksen (o agente Frank Black da série «Millennium»). O seu nervosismo explode com o passar dos anos, arrancando de Henriksen um desempenho áspero, que faz doer o nosso peito. Mas com o avanço da velhice, na alma desse irascível individuo, é um contraponto com aquele recém nascido das primeiras cenas, John, que, já adulto, ganha o talento – e que talento! – do próprio Viggo. O amargo de Willis no trato com o mundo piora com a idade, ao contrário do que se passa com John: este, quanto mais velho, sente-se ainda mais amado, sente-se bem resolvido na sua orientação homossexual e vive livre do alcoolismo da sua juventude, abraçando a paz. Ao menos é o que parece. O que lhe falta é estender essa harmonia ao pai. Essa será sua jornada na trama escrita por Viggo Mortensen.

Como Willis está à beira a demência, há momentos em que o passado e o presente colidem na casa de John, onde os comentários homofóbicos e racistas do seu pai fazem arder a garganta do filho e do seu marido, o enfermeiro Eric (Terry Chen). Willis ofende constantemente o casal, assim como é hostil com a sua filha, interpretada por Laura Linney. A sua boca é um esgoto que vaza brutalidade. Mas, no seu amor incondicional, John sabe filtrar os insultos e buscar a humanidade que sobrou no espírito alquebrado do seu velho pai. Um processo de filtragem retratado por Viggo com uma suavidade sedutora, traduzida na paleta de cores nunca saturadas da fotografia do dinamarquês Marcel Zyskind.

Título original: Falling Realização: Viggo Mortensen Elenco: Viggo Mortensen, Lance Henriksen, Terry Chen, Laura Linney. Duração: 112 min. Reino Unido/EUA/Canadá, 2020

https://youtu.be/VcoIsSwfDF8
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