Preparado para abrir 2023 a filmar, num set em Montreal designado para acolher a trama sobrenatural de «Shrouds», com Vincent Cassel e Léa Seydoux, David Cronenberg confessou ao 70º Festival de San Sebastián que está a se transformar num ciborgue. “Como nos meus filmes, em que eu sempre abordo a metamorfose do corpo e o organismo como sendo o único território possível da verdade, estou em mutação: uso um aparelho auditivo, acabo de operar o olho”. A brincadeira aconteceu no dia em que ele foi receber o troféu Donostia pelo conjunto de uma obra iniciada nos anos 1960 que, após um hiato entre 2014 e 2022, voltou a se debruçar sobre a produção de imagens em movimento com «Crimes do Futuro», cuja carreira começou em Cannes, na disputa pela Palma de Ouro.

Embalado numa serena trilha sonora de Howard Shore similar a um mantra, «Crimes do Futuro» faz jus a toda a expectativa que gerou. É sublime! É um espetáculo autoral. É um filme perfeito na sua dramaturgia intimista e de uma riqueza inestimável no reflexo das angústias que moveram o mundo em 2022, desde o início da Guerra da Ucrânia. Estão em seu filosófico argumento, filmado em Atenas, na Grécia, o abandono gradual do toque e do contato físico; a radical espetacularização das opiniões; identidades performativas; doenças sistémicas; e um conceito brilhante: “o design do tumor”, que sugere o crescimento desenfreado de ideias comatosas. O mundo que antes gozava com a troca de fluídos hoje goza no voyeurismo e na virtualidade. Soma a essa análise de mundo um Viggo Mortensen em estado de graça, no auge de sua potência como ator. Coroando tudo, há o fato de Cronenberg estampar a sua marca venérea, intestinal, a cada plano, sem abrir mão dos códigos de um género, a sci-fi. É uma ficção científica fisiológica.

Em «Crimes do Futuro», à medida que a espécie humana se adapta a um ambiente sintético, o corpo passa por novas mutações e perde a sua humanidade, tornando-se algo objetificado, na busca por uma aparente perfeição. Essa é a realidade de Saul Tenser (papel de Viggo Mortensen), artista performático célebre, apaixonado pela sua parceira Caprice (Léa Seydoux, igualmente potente). Ele faz mostras públicas das suas cirurgias de órgãos, em performances de vanguarda. Mas algo nessa rotina vai mudar quando Timlin (Kristen Stewart), uma investigadora do Registro Nacional de Órgãos, passa a seguir obsessivamente os seus movimentos, esbanjando desejo por Saul e os seus métodos de autoanálise. Há ainda uma espécie de investigador, encarnado pelo multiartista Welket Bungué, que carrega o filme com uma carga de mistério. Vale especial aplauso a produção dos figurinos, a se ressaltar o traje à la Darth Vader de Saul. O seu aspecto é de uma figura soturna, consumida pelas trevas de uma ambição artística irrefreável.

Após ter projetado «Crimes do Futuro», a Cannes entrou num casulo onde teve a chance de rever as microfísicas do absurdo e do abandono do nosso tempo, aplaudindo o nascimento de um filme seminal. Há uma sequência nele que se candidata à posteridade: uma dança de um performer cego e de boca costurada que tem uma profusão de orelhas presas ao corpo. É um signo de nossa incapacidade corrente de ouvir o mundo… de escutar o outro.

Título original: Crimes of the Future Realização: David Cronenberg Elenco: Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart, Scott Speedman Duração: 107 min. Canadá/Grécia/Reino Unido, 2022

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