Muanza, uma mulher natural do Reino do Congo, foi traficada para o Brasil em meados do século XIX. Ao despertar nos dias de hoje, Muanza depara-se com um Rio de Janeiro, onde figuras do passado e do presente são parte da procura pelas suas origens. O filme testemunha a vida que emerge dos espaços da cidade, os gestos de resistência frente à desterritorialização forçada e os afectos que sustentam as relações de irmandade.

Praia Formosa mostra-nos a viagem de Muanza, uma mulher trazida do Reino do Congo contra a sua vontade, para o trabalho escravo no Brasil colonial.

Muanza desperta em pleno Rio de Janeiro nos dias de hoje, presa no mesmo casarão onde viveu em cativeiro. E reencontra na casa, agora abandonada e em ruínas, outra personagem espectral: Catarina, mulher branca e portuguesa.

Enquanto procura formas de se libertar, é consumida pelo seu maior desejo: reencontrar Kieza, sua amiga e irmã. Muanza e Kieza são irmãs de travessia, conheceram-se ao cruzar o Atlântico na mesma embarcação. Um encontro que se dá pelo trauma da escravização, e inaugura um vínculo de irmandade inquebrantável. Encontram-se conectadas pela perda, mas também por tudo o que representam uma para outra: a terra, o afecto, a parceria, a resistência, a liberdade. Ao despertar em pleno século XXI, Muanza retoma a busca pelar sua irmã, refazendo a rota de fuga planeada com a amiga dois séculos antes.

No passado, mesmo com todas as adversidades, Muanza e Kieza conseguiram manter contacto durante muitos anos, através de cartas, encontros clandestinos e planos de fuga. À medida que Muanza encontra lembranças e objectos pessoais, as suas vivências em diferentes tempos conectam-se e afectam-se mutuamente.

Quando consegue finalmente sair do casarão, Muanza lança-se na cidade contemporânea e depara-se com um Rio de Janeiro revestido de reformas urbanas e apagamentos históricos.

A história de Muanza está intimamente ligada à formação da cidade. O seu despertar contemporâneo coloca-a de volta na busca pela libertação vivida no passado, percorrendo hoje os mesmos espaços da cidade colonial, agora actualizados numa cidade revirada pela gentrificação.

Numa narrativa fantástica, Praia Formosa introduz personagens ficcionais na relação com os espaços da cidade, misturando dados históricos, narrativas inventadas e personagens documentais. Nesse entrelaçamento de tempos e linguagens, o filme acompanha uma relação de acfeto e amizade capaz de cruzar os tempos.

NOTA DE INTENÇÕES

Praia Formosa é o último filme da minha trilogia sobre a região portuária do Rio de Janeiro. Há 10 anos venho filmando as transformações urbanas em curso na região e investigando os processos de formação da cidade. Um território em disputa desde que se tem notícia e que evidencia em seu tecido urbano as bases coloniais e exploratórias nas quais a sociedade se organiza até hoje. Uma pesquisa que se inicia de forma documental e histórica e que, pouco a pouco, vai ganhando ares ficcionais a partir dos encontros, contribuições e fabulações colectivas.

O filme surge de um desejo de investigação sobre o lugar onde nasci e cresci, uma busca por entender a cidade para além de sua imagem turística vendida como produto de exportação. Para isso era preciso olhar para aquilo que a cidade tenta insistentemente esconder, suas feridas e complexidades que são objectos de apagamentos constantes. A pesquisa, que se inicia a partir de dados históricos, rapidamente esbarra na inexistência das contra-narrativas na história oficial. Era preciso, então, um giro à ficção. E eu, como mulher branca, só poderia fazer isso a partir dos encontros com aqueles que sofrem os apagamentos históricos, mas que resistem a cada dia, e abrem novos caminhos em direcção às existências múltiplas e não hegemônicas.

O filme se constrói a partir de variadas contribuições que nos guiaram a cada etapa. Desde uma vasta pesquisa, conduzida por Milena Manfredini, de personagens e moradores da região portuária, com quem conversamos e convivemos. No processo de escrita de roteiro [argumento], em parceria com Aline Portugal e Mariana Luiza, entrevistamos dezenas de atrizes e mulheres negras, tanto no Brasil quanto em Portugal, que compartilharam connosco as experiências de habitar cidades que lhes são constantemente hostis. Consultorias de roteiro com Tiganá Santana e Luis Antonio Simas trouxeram a experiência e cosmogonia do povo Bantu. A noção espiralar do tempo, base da percepção do mundo Bantu, orientou a estrutura narrativa e as escolhas estéticas do filme. A reincidência dos espaços, fragmentados mas sempre conectados, é marcada pelas curvas do tempo não linear.

A construção de Muanza em parceria com a atriz portuguesa Lucília Raimundo que, ao fazer uma imersão de três meses no Rio de Janeiro, trouxe à personagem, além de seu corpo, alma e força, a experiência de ser estrangeira e ao mesmo reconhecer-se de forma natural como parte da história negra no Brasil. Mãe Celina de Xangô, impor tante Mãe de Santo do Candomblé e moradora da região portuária, foi parte da equipe de escavações do Cais do Valongo, identificando os objectos de seus ancestrais encontrados no sítio arqueológico, e emprestou ao filme não só sua história pessoal, como também interpretou a si mesma.

Julia De Simone

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