Em 1888, o poeta, dramaturgo e romancista francês Alfred Jarry (1873-1907) escreveu uma crítica mordaz da personalidade e postura comportamental do seu professor de Física, alegadamente um indivíduo grotesco e grosseiro que ele e muitos dos seus colegas consideravam o perfeito exemplar da verdadeira cavalgadura. Desse desejo de atirar a matar sobre o rústico e alarve docente, após uma primeira abordagem a que deu o nome de “Les Polonais”, o autor consolidou a seguir o seu veneno numa peça intitulada “Ubu Roi” (Ubu Rei), publicada em 1896. Peça que catapultou o então jovem estudante para a ribalta dos criadores cujas obras usavam com acutilante mordacidade os artifícios ficcionais para desancar no poder e nos mecanismos usados pelos poderosos para o manter. Tudo numa magnífica sucessão de episódios contra a corrente do pensamento conservador que fizeram de Alfred Jarry um dos precursores do surrealismo, do movimento dadaísta e do Teatro do Absurdo. Na citada peça, o intriguista Mestre Ubu, que se apresentava como ministro das Finanças, movido pela sua ambição e instigado pela mulher, a Madame Ubu, assassina o Rei da Polónia, o monarca Venceslau. Mas não se fica por aí e mata a maioria dos príncipes herdeiros, abrindo as portas a uma usurpação absoluta do poder, dando início a um período de ditadura durante o qual irá violar os princípios básicos daquilo a que, mesmo na época medieval, poderiam ser considerados os mais elementares direitos humanos. Não contente com a repressão exercida sobre os que lhe podiam fazer sombra, inventou uma série de impostos e um sem número de castigos para quem não cumprisse as novas e imperativas obrigações, completamente arbitrárias e na sua maioria de uma inominável crueldade. Mas não há mal que sempre dure. De facto, um dos filhos do Rei Venceslau que sobrevivera ao massacre da família real, o Príncipe Bardalau, procura restaurar e recuperar o antigo poder recebendo preciosa ajuda dos familiares, nomeadamente do Imperador Alexis, Czar da Rússia. E a guerra que se segue sairá cara ao Rei Ubu e aos seus mais próximos cúmplices. Estas são as grandes linhas de força com que Alfred Jarry concebeu esta comédia negra, aqui e além negríssima, sobre a condição humana e as vicissitudes de quem, sem querer, fica submetido a um regime de imbecis que exercem o poder de forma brutal e sanguinária. Um desvairado gangue de monstros, mentores da mais miserável corrupção material e espiritual, preocupados sobretudo em erguer um quadro político e administrativo destinado a proteger os seus interesses mesquinhos. Uma sátira dos dias que passam e da efémera vertigem dos que não se importam, se necessário, de lançar na miséria e decadência o resto da sociedade para concretizar os seus planos mais arrogantes e egoístas. Todavia, no final das contas, quando confrontados com alguém mais forte, estas criaturas revelam-se uma cambada de cobardes.


Não admira que esta peça seja uma das que ciclicamente vem sendo encenada, porque nela encontra-se um retrato amargo e certeiro dos abismos e manhas do poder corrompido e corruptor. Em Portugal, o cineasta e artista visual Paulo Abreu acrescentou ao rol imenso de adaptações uma interpretação fílmica a partir do original que alia a qualidade literária da obra ao quadro mais exuberante da imagética visual. Trata-se da sua primeira longa-metragem de ficção, mas a solidez do resultado final não constitui um golpe de sorte ou obra do acaso. Na verdade, há muito que Paulo Abreu se estreou no cinema, demonstrando aptidões e segurança na composição e estruturação dos seus projectos. Para mim, estranho seria que ele não desse boa conta do recado. E deu…!

Destaco em “UBU” a fotografia de Jorge Quintela. Magnífica composição a preto e branco, parâmetros visuais que ajudam a harmonizar na montagem as excelentes localizações e a excelente escolha dos enquadramentos presente na maioria dos planos. Não me admirava nada que o seu propósito, assim como do cineasta Paulo Abreu, fosse o de aproximar o “look” geral desta incursão cinematográfica a clássicos da História do Cinema como, por exemplo, uma das obras-primas do cinema soviético, «Ivan, o Terrível», 1944-1958, do genial Serguei Eisenstein. Mas vislumbro igualmente a gestão dos sempre parcos recursos que no final resulta em muito, modelo de produção similar ao que esteve por detrás da produção de um filme como «Othello», 1951, na versão “marroquina” do não menos genial Orson Welles. Se não foi assim, sejamos francos, até podia ser. Estão lá os sinais dessas e outras obras que perduram na memória cinéfila, como intemporais são os sinais da personalidade de Ubu, personagem idealizada por um autor singular que morreu jovem, amante das drogas, consumidor do inebriante absinto e admirado por gente da craveira de um Guillaume Apollinaire, Max Jacob, Marcel Duchamp, André Breton ou Pablo Picasso.


Destaco a globalidade do elenco, onde sobressai a figura sinistra mas controlada de Mestre Ubu e Rei Ubu (Miguel Loureiro) que, no seu lado mais demoníaco, quase sedutor, se revela figura perigosa e controversa. Praticamente ao mesmo nível de perversidade encontramos a Madame Ubu (Isabel Abreu), cruzamento entre uma Lady Macbeth e a Evil Queen (a Rainha Má da Branca de Neve) ou a “Wicked Witch of The West” (a Bruxa Má do Oeste do Feiticeiro de Oz, neste caso, do Leste). Excelente ainda a ideia de fazer de André Gil Mata o modelo para representar o exército russo como se este fosse constituído por clones do actor e argumentista. Bons efeitos visuais de João Pedro Gomes. Nota alta para o guarda-roupa e figurinos de Tânia Franco, para a caracterização e cabelos de Íris Peleira e para a direcção de arte de Sofia Pereira. Boa adaptação da peça “Ubu Roi”, argumento escrito por Paulo Abreu e André Gil Mata, com base na versão de Alexandre O’ Neill e Luís de Lima. Música original de Vítor Rua, que no essencial cumpre a função de criar atmosferas compatíveis com a opção da realização de não carregar com notas visuais de absurdo os ambientes do círculo público ou íntimo das personagens, preferindo antes distribuir o seu impacto por situações consubstanciadas através da consolidação de ideias e valores veiculados por cada um dos diálogos. Trata-se, aliás, da opção mais arriscada de Paulo Abreu, que não obstante consegue superar com alguma eficácia as dificuldades que podia encontrar nesta componente estrutural, reforçando o peso e presença material das atmosferas criadas e mantendo o ritmo certo da representação em conjugação com uma permanente dialéctica de articulação entre as linguagens do Teatro e do Cinema.

Título original: Ubu Realização: Paulo Abreu Elenco: Miguel Loureiro, Isabel Abreu, Sérgio Silva, Dinarte Branco Duração: 89 min. Portugal, 2023

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