“Corpos” (Devir) é uma edição hardcover que compila a série limitada de comics editada pela extinta Vertigo que integrava o catálogo da DC Comics. Os comics foram lançados entre 2014 e 2015 e reunidos nesta imperdível edição em capa dura que inclui capas alternativas dos diferentes volumes e esboços dos artistas no final do álbum.
Esta novela gráfica é inovadora na narrativa e na forma como se apresenta aos leitores. O criador e argumentista britânico deste livro, Si Spencer, esteve envolvido noutros projectos da Vertigo como “The Vinyl Underground” ou o popular Hellblazer. Ele também esteve envolvido em séries de televisão para a BBC e a ITV. “Corpos” foi a sua obra seminal. Si Spencer faleceu em 2021. Este comic tinha uma narrativa fraturada desenrolada em diferentes épocas em Londres (1890, 1940, 2014 e 2050) para sublinhar estas diferentes atmosferas e personagens Si Spencer trabalhou com múltiplos desenhadores para cada período onde se desenrola a acção. A época e o traço vitoriano com o desenhador Dean Ormston (1890), a claustrofobia e a intensidade de um relato em pleno Blitz de Phil Winslade (1940), os acontecimentos conturbados do passado recente no principio das guerras culturais no renascimento da extrema direita através do desenho mais feminino de Meghan Hetrick (2014) e finalmente futuro pós-apocalíptico caótico e indefinido que espelha no desenho os ambientes de desnorte da protagonista num mundo de pernas para o ar através do desenho de Tula Lotay (2050). Há diferenças propositadamente marcantes em cada expressão artística destes desenhadores que comungam na perfeição com os seus personagens.
Podemos finalmente abordar o elefante na sala, um dos problemas que muitos leitores podem ter é expectativas elevadíssimas de ler “Corpos” à espera de encontra uma fiel adaptação da série homónima da Netflix, nada disto acontece. Aliás é uma perda de tempo e prazer de leitura se estivermos à procura de semelhanças e diferenças entre estas duas formas de expressão. Podemos afirmar categoricamente que ambas são distintas e – novela gráfica e série de televisão – são dois animais completamente diferentes e majestosos em cada uma das suas versões. Pessoalmente adoro a série Netflix, é um tesouro para ser descoberto na plataforma de streaming, uma obra muito sofisticada, agradável ao olhar com belas interpretações e profundidade dramática. Mas o criador da série Paul Tomalin, por razões óbvias, preferiu uma abordagem mainstream da obra de Si Spencer para a Netflix. A série tem um dos meus actores favoritos de sempre, um furação da representação, Stephen Graham no papel de Mannix, um personagem que unifica a série Netflix mas não existe na novela gráfica. A série criou uma narrativa mais coesa e adaptou o conceito de Si Spencer em torno do mistério policial em diferentes épocas e deu-lhe um significado diferente há um grande plano que une todas essas eras distintas mas difere da mecânica do livro.

Por vezes é um pouco frustrante estar a escrever com meias palavras porque não queremos – nem devemos – retirar o prazer da descoberta dos leitores que estão diante uma novela gráfica marcante. Há uma tradição britânica no policial que o livro refere na história desenrolada em 1890 nas abordagens de investigação do grande detetive criado por Conan Doyle. Esse manto de investigação policial é um dos fios narrativos da história de “Corpos”, no mesmo beco do East End em Londres, em diferentes eras vai surgir um corpo nu com queimaduras na coxa, marcas de flagelação no peito e pelo menos uma punhalada profunda e um olho removido. Quatro detetctives deparam-se com o mesmo corpo nas suas épocas. Aqui está uma linha narrativa que difere entre a série e a novela gráfica. Si Spencer na sua novela gráfica preferiu criar uma personagem que é uma espécie de grande “pacificador”, uma figura que navega nos tempos mais aflitivos da humanidade e tenta através da bondade na alma dos seus protagonistas detectives encontrar uma solução para os problemas da raça humana que é caracterizada pela sua contradição ao evoluir a sonhar sempre com a destruição. No final do livro, Inglaterra é o exemplo desse mesmo debate de forças que resume bastante o que decorre neste livro que consegue ser um policial, mas ao mesmo tempo lidar com temas fraturantes na sociedade (e um desses temas é mesmo apocalíptico).
Em Londres, 1890, temos um detetive que tem de esconder a sua homossexualidade na época vitoriana (em Inglaterra até 1967, os maiores de 21 anos tinham a cadeia à sua espera por serem homossexuais). A narrativa de 1940 é mais violenta, o detective Whiteman é um canalha de primeira – mais uma diferença para a série Netflix – é um agente da Lei que é o rei do crime numa cidade constantemente bombardeada pelos nazis, sendo forçado a confrontar-se com o seu passado tenebroso. Na história de 2014, temos Hassan uma comissária da polícia em Londres que é muçulmana e enfrenta uma onda de ataques de um grupo racista de extrema-direita, ela depara-se com pessoas que são fantoches, sem amor próprio e inchadas pelo fracasso e o ódio. Em Londres, 2050, temos a jovem Maplewood que num ambiente mais esotérico procura respostas sobre o misterioso corpo e sobre o passado de si mesma que está interligado a um mundo em ruínas.
Se não estivermos preocupados em encontrar afinidades entre o livro e a série fica a garantia de lermos um policial genial de Si Spencer. O livro adquire formas de narrativa épica sobre os grandes desígnios da humanidade e aqueles que são incorruptíveis e defendem a todo o custo a preservação do Bem.
