Não há melhor forma de começar o ano: visionar um filme de qualidade, escrito e realizado com inteligência e crueza, com sensibilidade e atenção às emoções. «Anatomia de uma Queda», da realizadora Justine Triet, é um dos filmes do ano!
Vamos por partes. O filme leva-nos às paisagens brancas e geladas de Grenoble, França, onde acaba de morrer um homem, Samuel, após uma queda do piso superior do chalet no qual habitava com a sua mulher, Sandra, o filho Daniel, invisual, e um cão. Ambos são escritores, viveram em Londres e agora residem na terra natal de Samuel para reunir melhores condições de trabalho – ou seja, para escrever. A relação entre eles não é boa, em particular após o acidente que deixou o filho cego. A abertura do filme é sublime: no piso central, Sandra recebe uma jovem estudante para a entrevistar. Porém, o marido boicota a entrevista ouvindo, em loop e com o volume no máximo, a mesma música, vezes sem conta, até a jovem desistir da entrevista. Momentos depois, a tragédia acontece! Uma abertura sublime que instala o clima de tensão próprio da gravidade da situação e nos transporta para uma atmosfera pesada e carregada de contradições e suspense.
É a radiografia da morte dum homem, é a investigação que se segue, minuciosa e criteriosa, ávida de encontrar respostas e de estabelecer a cronologia dos eventos trágicos. Com um ritmo intenso e emoções fortes, os fatos apurados adensam as suspeitas sobre a culpabilidade da viúva – composição soberba de Sandra Huller, consagrada na nomeação para o óscar de melhor atriz – e contribuem para a ambiguidade e incerteza no testemunho chave de Daniel, o filho invisual, única testemunha da relação complexa do casal. As sequências em tribunal, durante o julgamento da escritora, são assombrosas, pontuadas pela troca de argumentos hábil e desconcertante entre um procurador irritante – mais uma interpretação superlativa – e do advogado de defesa calmo e incisivo, amigo da ré.
A tensão cresce, alimentada ao longo da segunda metade do filme, sobretudo com o julgamento, durante o qual são revistos todos os detalhes da tragédia, as antecedentes de tensão entre o casal, os problemas psicológicos do falecido, em especial a partir do acidente que deixara o filho cego, e a falta de solidez do testemunho do jovem sobre o que aconteceu naquele dia fatídico, da morte do Pai.
Repito, como comecei: é, seguramente, um dos melhores filmes do ano, justamente consagrado em Cannes e com mais de 60 prémios em festivais, apontado na corrida aos óscares, para o qual está nomeado nas duas categorias principais (melhor filme e de melhor realização). É a prova da força do cinema francês atual!
Título original: Anatomie d’une chute Realização: Justine Triet Elenco: Sandra Huller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner Duração. 150m; França, 2023
Foto © LESFILMSPELLEAS LESFILMSDEPIERRE
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