Era a série de que mais precisávamos. Nós é que não sabíamos. Adaptação televisiva do livro publicado por Neil Gaiman em 2001 conta com um elenco de luxo e serve de alegoria a algumas das questões mais pertinentes da atualidade. Dos Vikings à tecnologia de ponta, será que a humanidade está preparada para os deuses que louva?

[Texto originalmente publicado na Metropolis nº50, Junho 2017 com o título “American Gods: os deuses devem estar loucos”]

No filme «Os Deuses Devem estar Loucos» (1980), com argumento e realização de Jamie Uys, a vida de uma tribo isolada muda irremediavelmente quando um dos seus elementos contacta com ‘tecnologia’ pela primeira vez, neste caso uma garrafa de Coca-Cola. Julgando tratar-se de uma dádiva divina, partilha-a com a sua tribo, que a usa para diversas tarefas, mas depressa os companheiros começam a lutar por causa da garrafa. É então que ele a tenta devolver aos seus deuses. À boleia de uma boa dose de comédia, há dois ‘infernos’ que chocam: a modernidade e a dureza do deserto de Kalahari: “Parece um paraíso, mas é, na verdade, o deserto mais traiçoeiro do mundo”, diz, a certa altura, o narrador sobre aquele local.

Este é apenas um dos exemplos em que o cinema e a televisão arriscaram novas abordagens aos deuses e, mais concretamente, àquilo que o ser humano idolatra no seu quotidiano. Todavia, há muito que a reverência deixou de ser exclusiva aos deuses: a sociedade tem vícios e atitudes que lembram a devoção que se entregava, e entrega, aos deuses das diversas religiões. Na arte, esse contexto é ultrapassado e adaptado às exigências da narrativa, com os autores, da literatura ao grande ecrã, a aproveitarem a liberdade criativa para, ao amplificá-la, se debruçarem sobre a realidade em que vivem. Numa espécie de alegoria dos tempos modernos, onde o homem é, ao mesmo tempo, veículo e intermediário de uma suposta divindade, usa-se o sagrado para criticar a própria humanidade.

Foi isso que fez – de forma sublime, convém dizê-lo – Neil Gaiman no seu livro Deuses Americanos, publicado pela primeira vez em 2001. Mas o interesse na temática não era novo. Já em Good Omens, de 1990, escrevera, a quatro mãos com Terry Pratchett, o nascimento do diabo como sinal trágico do fim do mundo e a consequente luta entre o Bem e o Mal, o sagrado e o profano. Voltou à inspiração divina dois livros e 11 anos depois, imaginando uma guerra épica entre os deuses antigos e modernos, vivida no campo de batalha mais inesperado de todos: o planeta Terra. E sem recurso, equitativo pelo menos, aos poderes que lhes deram nome e prestígio.

Da página para o pequeno ecrã passaram-se 16 anos e, pela mão do canal Starz nos Estados Unidos – e da Amazon em Portugal –, o confronto divino ganhou cor e densidade, mas não perdeu atualidade. A realidade e a utopia passeiam-se no ecrã, revelando (ou escondendo) a crítica e a importância do nosso olhar crítico sobre o mundo e nós mesmos. No presente, com os Estados Unidos de Donald Trump, o terrorismo e o imparável avanço tecnológico, talvez a trama de Deuses Americanos nunca tenha feito tanto sentido como agora. Ao leme estão Bryan Fuller (criador de «Wonderfalls», «Dead Like Me», «Pushing Daisies» e «Hannibal») e Michael Green (criador de «Reis», protagonizada por Ian McShane, que integra «American Gods»). Fuller, aliás, terá abandonado «Star Trek: Discovery» para se dedicar em exclusivo a este projeto.

A escuridão como meio de ver a luz

<Texto>Em «American Gods», tudo começa quando, ao jeito de um golpe de misericórdia premonitório, Shadow Moon (Ricky Whittle) sai da prisão alguns dias antes do previsto, na sequência da morte da mulher e do melhor amigo num acidente. Quando a vida por que esperou atrás das grades se revela impossível, Shadow não tem nada a perder, mas, ainda assim, esforça-se por esconder a violência que parece querer escapar a qualquer momento – sobretudo quando a funcionária da companhia aérea complica a sua chegada a tempo ao funeral. É então que um homem misterioso, mais velho, consegue – qual truque de magia sem truque – ludibriar a mulher de temperamento difícil, graças à sua idade avançada.

Ao encontrá-lo depois na primeira classe do voo, Shadow não sabe se há-de admirá-lo ou descarregar nele todas as frustrações em que está mergulhado. Quando uma conversa, aparentemente inocente, se torna cada vez mais profunda e estranha, Shadow tenta atribuir-lhe um sentido lógico. Sem sucesso. O misterioso Mr. Wednesday (Ian McShane) – que assim se apresenta depois de saber que é quarta-feira (wednesday em inglês) –, sabe mais sobre a vida do ex-presidiário do que seria suposto. No meio do choque, apresenta a Shadow uma oferta de trabalho muito questionável, mas este recusa-a, acreditando que, depois de aterrar, haverá um pouco de normalidade à sua espera. Tal não se verifica, sendo que, pelo caminho, Shadow se vê jogado em dramas humanos e paranormais.

Conflito humano antes de mostrar ser divino, a série explora a impotência do indivíduo perante o destino, que parece ‘troçar’ dos pequenos raios de luz que vão surgindo por entre as nuvens. Ao mesmo tempo, a perceção de que tudo é efémero, até as emoções e as certezas do quotidiano, choca com a incapacidade de o ser humano contrariar a sua falta de sorte. Assim, destino ou não, Shadow vê-se ’empurrado’ para trabalhar com Wednesday, regressando inevitavelmente à vida do crime. O que ele não sabe é que a questão é bem mais complexa (e ambígua) do que isso.

Na verdade, Wednesday é Odin, o deus dos deuses da mitologia nórdica. Ele, tal como os restantes deuses antigos, foi renegado para a ‘vulgar’ condição humana, enquanto os deuses da modernidade foram ganhando cada vez mais força. A oração, ou adoração, dos homens é o combustível que torna os deuses aquilo que são – pelo que, ao adorarem os novos deuses (tecnologia, media, etc.) e não os antigos, estes ficam mais fracos. Tecnologia e Media, aqui corporizados pelos atores Bruce Langley e Gillian Anderson, surgem como divindades mas apontam, ainda assim, as suas culpas diretamente para nós: estão cada vez mais fortes porque as pessoas as idolatram desenfreadamente. De um lado, dá-se a multiplicação de falsos deuses – como os vícios –, e do outro o poder das entidades divinas retira-o aos homens, provocando a sua desresponsabilização.

Bryan Fuller: nova série, os vícios do costume

<Texto>Bryan Fuller tem uma identidade muito própria – um pouco como acontece também com Noah Hawley – e, sem demérito para Green, isso é algo que transparece desde o primeiro minuto de episódio. Não é para menos. O argumentista e produtor traz consigo velhos conhecidos e coloca-os na cadeira de realizador, nomeadamente David Slade, Adam Kane e Vincenzo Natali, que já antes tornaram real a sua ‘loucura’ visual. Ainda assim, há uma surpresa entre o leque de ‘escolhidos’: Floria Sigismondi. Mais conhecida pelos seus vídeos musicais, a realizadora surpreendeu em «Demolidor» e, este ano, prepara-se para regressar atrás das câmaras em «The Handmaid’s Tale» e «American Gods». Outra surpresa é Maria Melnik, desta feita como argumentista principal, depois de uma passagem mais ‘secundária’ por «Velas Negras», onde era assistente.

O primeiro episódio de «American Gods» não é ‘fácil’. A bem da verdade, nada o é quando Bryan Fuller está envolvido. Primeiro estranha-se, depois entranha-se, mas, para quem não conhecer o universo criado por Neil Gaiman, a componente filosófica (excessiva) do episódio piloto pode tornar-se um obstáculo intransponível. Há muito que Fuller não escreve ‘apenas’ para os seus fãs, como aconteceu no início da sua carreira como responsável máximo de uma série. «Hannibal» foi um ponto de viragem e há que reconhecê-lo, com todas as mais-valias e diferenças que isso acarreta: mexer em histórias que já fazem parte da nossa cultura traz a responsabilidade acrescida de não falhar ao imaginário de quem as conhece. Mas, além disso, fazer uma série televisiva, numa peak season ininterrupta, com tanta oferta, atribui um peso acrescido ao primeiro episódio: ele tem o poder de nos ligar ou de nos afastar para sempre.

O talento e visão de Fuller é inegável, mas em excesso já lhe custou o cancelamento de «Hannibal», a primeira série criada por si que conseguiu mais do que uma temporada. Mais uma vez, a unicidade do criador, inicialmente recebida em euforia, acabou por virar-se contra ele quando a narrativa ganhou contornos demasiado abstratos. Conseguir dosear a ação e o seu simbolismo é essencial para consolidar uma série, pelo que o piloto de «American Gods» deixa um sabor agridoce na boca.

Por um lado,  o realizador David Slade, que comandou cinco episódios de «Hannibal», sabia o que tinha de fazer no piloto de «American Gods». O universo visual a que Fuller já nos habituou é retratada impecavelmente pela lente de Slade, que explora as potencialidades do argumento não apenas em termos de cor, mas também do tom que deve ter. Deste modo, cada cena não existe isolada, mas mergulhada no universo que os criadores se propõem a criar na série: do ritual Viking à cena sangrenta (e totalmente imprevisível) de sexo que encontramos mais à frente no episódio, todo o piloto parece um puzzle impecavelmente montado, onde cada peça transporta uma importância de argumento e simbolismo. Mas será que chega?

Embora o título da série não deixe margem para dúvidas, a trama de «American Gods» é adiada e sobreposta pela necessidade de enquadrar as personagens no seu ponto de partida. Shadow saído da prisão e apanhado de surpresa pela suposta traição daqueles que mais amava, ou Bliquis que procura de forma ‘esfomeada’ ser idolatrada novamente. Ainda que incontornável, este segmento da narrativa carece da parte que a complementa, e que só chega mais tarde ao espectador. Opção criativa, pode significar um entrave na hora da série se tornar um ‘deus’ para os seriólicos. Mas, apesar da qualidade que traz consigo, Fuller terá de se adaptar à exigência de escrever para todos e não apenas para alguns. Só assim se sobrevive para continuar a contar a história e se resiste às consequências impiedosas das audiências (ou falta delas). Felizmente, e contrariando o seu passado mais azarado, viu confirmada a segunda temporada de «American Gods» pouco tempo depois da estreia.

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