Logo a abrir, uma frase inscrita nas primeiras sequências de «To A Land Unknown» («A Uma Terra Desconhecida»), 2024, do realizador dinamarquês de origem palestiniana Mahdi Fleifel, define com particular acutilância a condição dos que se ausentam da sua pátria de nascimento na condição de deserdados e espoliados dos direitos históricos que lhes pertencem. Entretanto, por vezes, os que menos consciência política e social demonstram vivem de costas voltadas para a sua mais do que legítima matriz identitária, na esperança de a qualquer preço abraçarem uma vida melhor num mundo novo que a propaganda e a lenga-lenga das redes sociais lhes impinge como o sonhado “paraíso” europeu, mesmo que essa alternativa não passe disso mesmo, uma ilusão que se paga cara quando ela se desvanece no confronto com a realidade concreta das sociedades ditas do bem-estar e do lazer, que se dizem solidárias com os povos desfavorecidos mas pouco ou nada fazem para alterar as armadilhas existenciais a que muitos homens e mulheres estão sujeitos nos seus países de origem. Podemos então ler nos primeiros minutos o seguinte: “De certo modo, o destino dos palestinianos passa por acabarem, não onde começaram, mas sim num qualquer lugar inesperado e longínquo”, palavras assinadas por Edward Said (1935-2003), académico, crítico literário e activista político nascido na Palestina sob ocupação britânica. Posteriormente, devido ao seu pai ser americano, recebeu igual nacionalidade, acabando por construir nos EUA uma notável carreira onde exerceu grande influência nos estudos sobre o colonialismo e o imperialismo, sobretudo na muito viva análise do modo como o Ocidente olhou, e olha, para o Médio Oriente.

Estamos assim, no projecto fílmico «A Uma Terra Desconhecida» [«To A Land Unknown»], no domínio dos que sempre procuraram uma luz que lhes indicasse com lucidez o caminho capaz de contrariar as brumas de um destino inevitável? Sim e não. De facto, os dois palestinianos sobre os quais Mahdi Fleifel irá incidir a principal atenção nos diversos episódios da história desencantada e amarga que nos quis contar, Chatila (Mahmood Bakri) e Reda (Aram Sabbah), não são heróis de louvar nem militantes de uma causa nobre. Antes pelo contrário, são dois marginais a viver de expedientes manhosos e seguramente de algum apoio social dado pelas autoridades de acolhimento gregas. Para esta dupla de delinquentes, o martírio e a luta de muitos dos seus concidadãos e compatriotas não parece significar nada ou quase nada. Numa palavra, não são flores que se cheirem. E se voltassem de armas (no sentido literal da palavra) e bagagens ao país de onde haviam saído, não a Palestina ocupada por Israel, mas o Líbano para onde milhares de palestinianos se viram obrigados a rumar por serem perseguidos e humilhados na sua pátria verdadeira e ancestral, não demorariam muito a confrontar-se com a real e poderosa resistência dos representantes do seu povo exilado. Ou seja, nem para mártires serviriam. Chatila e Reda são manifestamente pessoas pouco confiáveis. No entanto, a força deste filme reside precisamente nesta arriscada assunção primordial da narrativa, ou seja, os produtores não foram buscar personagens exemplares para falar da diáspora forçada de um povo, foram antes procurar aqueles que através das suas acções condenáveis (roubos, vigarices, prostituição masculina, extorsão, cumplicidade com redes criminosas, devassa da propriedade alheia) se destacam pela negativa e pela sua alienação ideológica nos caminhos cruzados de uma cidade como Atenas, onde até o seu preconceito racial se faz sentir. Num certo momento, Chatila compara com desdém os gregos aos árabes (“…são como nós”, diz ele), numa espécie de dupla rejeição: por um lado, a da sua identidade e, por outro, a do mínimo de respeito por quem os acolhe. Sem dúvida, aquela insidiosa provocação não passa de um julgamento sectário relativamente a cidadãos comuns com quem partilham as vicissitudes do quotidiano. Na verdade, nem se dignam dirigir uma crítica consistente ao poder político que em muitos casos não faz um esforço sério e compatível para sustentar a real integração dos diferentes refugiados que, dia após dia, continuam a cruzar as fronteiras para entrar no espaço europeu.

De entre os desgraçados dessa pungente diáspora, nas sequências finais do filme iremos conhecer um grupo de sírios que haviam sofrido na pele as consequências de uma guerra brutal no seu país. Mas iremos igualmente perceber como eles serão vilipendiados e sequestrados de forma canalha pela dupla Chatila e Reda e ainda por outros palestinianos, porventura ainda piores do que eles. Pelo menos, mais violentos, bastante mais sacanas e aparentemente muito mais integrados no chamado crime organizado onde o comércio clandestino da droga prolifera. Tudo acontece para dar corpo a um plano sem alma que deveria, caso fosse bem-sucedido, levar os dois palestinianos protagonistas para fora da Grécia, rumo a uma Alemanha onde sonhavam instalar-se com um negócio de restauração, mais precisamente um café. Pensavam os dois resolver assim a sua vida, e para Chatila seria uma oportunidade de reencontrar a mulher (segundo ele, uma excelente cozinheira) e o filho ainda criança, que permaneciam internados num campo de refugiados.
Aqui chegados, os espectadores sabem que a possibilidade de sucesso não está ao virar da esquina. Na verdade, já se assistira a uma outra canalhice pegada que resultara no desaparecimento de duas vítimas deste autêntico bando de criminosos, uma grega socialmente desenquadrada e algo promíscua, Tatiana (Angeliki Papoulia), que se prestou a um serviço pago que comportava riscos de alguma dimensão, e um jovem adolescente palestiniano, Malik (Mohammad Alsurafa), que aceitou embarcar num esquema ilegal para chegar a Itália, como era seu desejo. No decorrer do processo narrativo, a mulher e o rapaz vão pura e simplesmente desaparecer, mas esse constitui outro grande exemplo de como se pode com eficácia enquadrar diferentes perspectivas e diversas contradições reforçando a manipulação da linguagem cinematográfica a favor dos pressupostos que o realizador e argumentista queriam destacar. De facto, a ausência da mulher e do rapaz far-se-á sentir dali para a frente em cada fotograma, e esse expediente ficcional irá espoletar, por entre as sombras cada vez mais negras dos crescentes conflitos dramáticos, a resolução final associada ao maior dos golpes e ao mais sinistro dos embustes. Prova de uma devastadora miséria moral. Tudo vai acabar numa sequência de vida ou de morte (nunca saberemos) onde as lágrimas vertidas por Chatila não são apenas de dor, mas antes e sobretudo de angústia, desespero e impotência. Por razões óbvias, mais não digo, a não ser que recomendo a visão deste filme com olhos e mente bem abertas. Porque na vida as coisas não são a preto e branco, são bastante mais complexas e, por isso mesmo, muitíssimo mais interessantes.
Mais uma excelente iniciativa da produtora e distribuidora THE STONE AND THE PLOT. Num panorama morno de estreias estivais com algumas obras algo descartáveis, filmes como este ajudam os cinéfilos a manter viva a chama do cinema de autor comprometido e atento ao que se passa no mundo, doa a quem doer.
Título original: To A Land Unknown Realização: Mahdi Fleifel Elenco: Angeliki Papoulia, Mahmoud Bakri, Manal Awad Duração: 105 min. Reino Unido/Grécia/ Palestina/França, 2024