Benoît Jacquot nasceu a 5 de Fevereiro de 1947, e no contexto da indústria cinematográfica francesa a sua carreira não podia começar melhor. Foi assistente de Marcel Carné, Roger Vadim e Marguerite Duras. Trabalhou com esta última em algumas das mais emblemáticas longas-metragens da realizadora e escritora, como «Nathalie Granger», 1972, «La Femme du Gange», 1974, e «India Song», 1975. Realiza a sua primeira obra «L’Assassin Musicien», 1975, com uma das musas da Nouvelle Vague no papel protagonista, Anna Karina. Muitos anos passaram desde esses dias de formação e consolidação de uma vocação, e no circuito comercial nacional surge agora pela mão da distribuidora Films4You a sua derradeira obra intitulada «Belle» («A Morte de Belle»), 2024. Face ao filme que visionei, não deixo de me interrogar sobre o modo como a narrativa se estrutura numa espécie de depoimento sobre quem, face a circunstâncias que eventualmente não controla, sofre acusações baseadas em suposições ou aspectos marginais e, no caso deste recente «Belle» (há uma outra versão cinematográfica baseada no mesmo romance de Georges Simenon, o homónimo «La Mort de Belle», 1961, de Édouard Molinaro), nunca esclarecidas pelas autoridades policiais ou pela justiça. Tudo isto numa era em que alguma informação de estatuto, digamos, clássico, parece andar a reboque de uma certa selvajaria opinativa que circula nas redes sociais onde se argumenta, porque sim, se condena antes de investigar, e se publica antes de confirmar. Isto na “melhor” das hipóteses. Porque muitas vezes existe mesmo uma clara intencionalidade na distorção deliberada da realidade para que ela encaixe numa determinada estratégia mediática a favor de projectos, agendas e programas pouco ou nada recomendáveis. Na verdade, aquele que podemos designar como o protagonista masculino de «Belle» vai ser confrontado com essa pressão exercida pelos ecos do chamado julgamento popular que, infelizmente, uma certa imprensa sensacionalista, não digo que alimente, mas nem sempre contraria.


Mas vamos ao que interessa do ponto de vista da análise crítica que se pode fazer do argumento de «A Morte de Belle». No papel de protagonistas encontramos Pierre (Guillaume Canet) e Cléa (Charlotte Gainsbourg). Trata-se de um casal em que

se percebe uma distância que, no entanto, não parece atormentar o essencial do seu quotidiano. De algum modo, cada um vive a vida que quer e cada um faz o que pensa ser melhor para satisfazer os seus desejos. Num plano mais íntimo, por vezes mesmo secreto, as suas fantasias, não necessariamente sexuais. Todavia, há qualquer coisa de reprimido em Pierre e de dissimulado e recalcado em Cléo. Pierre passa longas horas numa cave onde se dedica a uma paixão maior, a matemática pura, e ainda a observações casuais da vizinha da casa em frente, que na escuridão da noite se mostra no seu esplendor carnal enquadrada pela janela de um quarto iluminado como se fosse a imagem de um ícone assombrado do desejo, aquele que palpita inacessível. Um autêntico desafio para um voyeur, misto de provação e deleite. Ela, na sua nudez, parece saber que Pierre a olha, e isso deve seguramente fazer alguma diferença nas muito longas noites de uma cidade de província onde os valores conservadores e as aparências prevalecem sobre o assumir da personalidade própria, por mais pacífica ou rebelde que seja. Por seu lado, Cléo não se inibe de ir sozinha ao encontro de amigos num clube nocturno, e numa sequência rápida, mas incisiva seremos confrontados com um desvio da sua fidelidade conjugal quando encontra por acaso um velho amante e a vemos sugerir aquilo que os dois afinal queriam. Diz ela, com inusitada firmeza: “On baise?”. Corte brusco e passamos para um quarto de hotel onde despacham a questão ao ritmo e velocidade dos coelhos. Ponto final, parágrafo, e até daqui a (outros) doze anos! Em suma, Pierre e Cléo são um casal independente que faz de conta que ainda se ama. Ou será que há mais qualquer coisa que não se menciona? Mas o romance de Georges Simenon, “La Mort de Belle”, que serviu de matriz ao argumento, não era uma história de amor nem um romance de costumes, mas sim uma intriga policial. Por esta razão, ficamos desde cedo a saber que em casa deste casal, no fundo igual a muitos outros, vivia uma rapariga ainda menor, precisamente a Belle de quem se fala. Entretanto, ela vai aparecer morta por estrangulamento no seu quarto e, nessa noite maldita, só Pierre se encontrava em casa. Passa de imediato a ser o suspeito número um do crime. No entanto, segundo ele, não se apercebera de nada, e nos diferentes depoimentos que irá prestar nos sucessivos inquéritos policiais, insiste que permanecera na referida cave onde de facto se isolava do mundo exterior e, dizemos nós, das miudezas da vida doméstica. Mas não vale de nada reclamar inocência, aliás, a ausência física do local onde a morte ocorreu, porque a imprensa não o larga e as redes sociais vão arrastar o seu nome para os abismos e o lodo da insinuação primária. De repente, Pierre vê o seu mundo virado do avesso e as pessoas que ainda acreditam nele permanecem naquele limbo da dúvida, sobretudo porque a certa altura fica claro que ele não se defende, apenas observa o que vai acontecendo ao seu redor.

Benoît Jacquot consegue nesse particular e no limite da insegurança psicológica de Pierre credibilizar este comportamento, por muito estranho que seja. O rosto impassível de Pierre, que o actor Guillaume Canet irá subverter na derradeira parte do filme invertendo os valores da sua composição inicial, permite ao espectador ler no seu olhar o que as restantes personagens desejavam ver nele, mesmo as que o consideravam inocente ou, pelo menos, as que lhe davam o frágil benefício da dúvida. Na minha opinião, a resolução final (que aqui não revelo por razões óbvias) só peca por não levar mais longe este jogo de silêncios, meias palavras e ambiguidades. Derrapa um pouco ao não dar mais corpo e alma a uma clara e gradual vertigem de Pierre que a certa altura, marcado e humilhado pela impotência, podia muito bem ser empurrado para a réplica de um crime similar ao de que era suspeito. E, por fim, a provável ou aparente reconciliação matrimonial que já ninguém esperaria não robustece a narrativa. Não sendo uma obra maior do realizador, e não sendo uma adaptação exemplar do romance original, há, no entanto, neste filme uma angústia, uma ansiedade e uma pressão cuja articulação fílmica, mesmo com reservas, vale a pena acompanhar.    

Título original: Belle Realização: Benoît Jacquot Elenco: Charlotte Gainsbourg, Guillaume Canet, Patrick Descamps Duração: 100 min. França/ Bélgica, 2024

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