Parte da selecção oficial do Festival de Cannes, este podia ser só mais um filme sobre o Holocausto, mas há algo de diferente neste filme animação de Michel Hazanavicius, vencedor do Óscar de Melhor Realização por «O Artista», em 2012.
Narrado em tom irónico como um conto de Natal, «A Mais Preciosa Mercadoria» começa por nos apresentar um casal de lenhadores pobres, nas paisagens gélidas de uma floresta nevada que lhes dá matéria para trabalharem, mas também os afasta de grandes oportunidades de vida e de aconchego alimentar.
Numa das suas rotinas de deambulação pela floresta, com um ramo de galhos a pesar-lhe o dorso, a esposa do lenhador ajoelha-se perante a passagem de mais um comboio e pede ao seu Deus que esse combóio deixe alguma mercadoria esquecida, que a conforte a ela e ao marido neste inverno rigoroso. Com a passagem do combóio, ela percebe que as suas preces não foram ouvidas, mas quando se afasta sente um choro de um bebé. Aproxima-se e percebe que outro dos seus maiores desejos – voltar a ser mãe depois da morte do seu filho – foi afinal ouvido e agora terá como grande missão fazer com que o seu bruto marido aceite esta criança, tida como mais uma “criança sem-coração”. Estas são as crianças que vêm dos comboios, “uma criança maldita, daqueles que fizeram a guerra”…
Com o crescimento do bebé, somos convidados a entrar dentro da carruagem, que nos situa no momento em que um pai teve de fazer a mais difícil das escolhas. Num acumular de adultos, idosos, crianças e bebés, percebemos para onde se dirigem estes comboios. De uma forma leve, mas intensa e profunda, Hazanavicius leva-nos de volta para um campo de concentração e bastam algumas imagens para reavivarmos em nós o sentimento de tragédia da Segunda Grande Guerra.
A história desenvolve-se, então, em dois momentos, que definem dois caminhos que a vida tornará a cruzar. Hazanavicius não pretende mostrar o horror, mas definitivamente deixa o lembrete de algo que jamais poderemos esquecer, especialmente agora que se completam 80 anos desde o final de um dos momentos mais terríveis da história da Humanidade.
Com um traço de animação simples, mas rude e cru, ele consagra o que de melhor pode transparecer na desgraça e na tragédia. O amor. O amor de cuidar do próximo e o legado de coisas que não se aprendem, mas que se herdam. O amor de um pai que tem de fazer uma escolha, mesmo não sabendo que essa é uma escolha de vida, mas apostando apenas na via da possibilidade. Em «A Mais Preciosa Mercadoria», o realizador recorda-nos que o que pedimos a Deus nem sempre vem na forma que desejamos. Por vezes, surge da maneira mais difícil de imaginar, mas com a maior das habilidades: a de transformar e impactar a vida, e o coração, de todos.
Título Original: La plus Précieuse des Marchandises Título internacional: The Most Precious of Cargoes Realização: Michel Hazanavicius Elenco: Dominique Blanc, Grégory Gadebois, Denis Podalydès, Jean-Louis Trintignant Duração: 81m França 2024