«As Estações», de Maureen Fazendeiro, é um daqueles filmes que não querem mostrar o mundo, querem antes senti-lo. Por isso, é um desses raros gestos de cinema que se fazem mais de escuta do que de olhar. A realizadora franco-portuguesa, que já tinha surpreendido em «Diários de Otsoga» — a ‘meias’ com o companheiro Miguel Gomes —, regressa agora com um filme que parece respirar junto da terra — o Alentejo — como quem escava uma lembrança em vez de filmar uma paisagem. Não é um documentário nem uma ficção: é uma espécie de sonho arqueológico em 16 mm, uma viagem pelas camadas invisíveis do tempo e da memória. E o mais curioso é que, quanto mais fundo ela escava, mais o filme se torna leve.

Tudo começa com uma descoberta improvável: do casal de arqueólogos alemães Vera e Georg Leisner, que durante a Segunda Guerra Mundial andou pelo Alentejo a catalogar antas e monumentos megalíticos enquanto o seu próprio país ardia em ruínas. Há qualquer coisa de paradoxal e quase poética nesta imagem — escavar o passado enquanto o presente se destrói — e é daí que nasce a ideia deste novo filme de Fazendeiro. O cinema, afinal, também é isso: um exercício de escavação. Não de ossos ou pedras, mas de imagens e memórias. E o Alentejo, com a sua luz lenta e as suas vozes que vêm de longe, é o cenário perfeito para essa busca.

O que Fazendeiro filma não é o Alentejo real — o agora das brochuras turísticas e dos postais com sobreiros, que ilustram os grandes resorts para ricos —, mas o Alentejo sonhado, lembrado, transmitido. A terra como um espelho de todas as eras. Entre entrevistas a pastores e trabalhadores rurais, cartas dos Leisner lidas em voz-off, lendas inventadas por crianças e canções populares, o filme constrói um mosaico que é mais sensorial do que narrativo. A câmara não se impõe, tacteia. Move-se devagar, como se tivesse medo de perturbar a respiração do lugar. Há planos que parecem acariciar o mundo: um tronco de sobreiro filmado como um corpo humano, a poeira suspensa no ar, o som do vento que antecede a imagem. É o cinema no seu estado mais físico e espiritual ao mesmo tempo.

E é também um cinema sem tempo. “As Estações” não seguem uma linha, mas sim um movimento circular, espiralado, o das estações, o das colheitas, o das gerações de pessoas. O passado e o presente misturam-se sem cerimónia, como se a História e a memória partilhassem o mesmo campo de visão. As vozes dos mortos atravessam as dos vivos. Tudo vibra no mesmo tom, suave e hipnótico. É um filme que não conta, evoca. Que não explica, insinua. E por isso tem tanto de poético como de político, porque dar tempo e escuta a um território esquecido é, em si, um ato de resistência.

Mas filmar o Alentejo é sempre perigoso. Há uma linha fina entre o lirismo e o postal, entre o olhar amoroso e o olhar de quem chega de fora. Fazendeiro evita o folclore, mas nem sempre escapa à tentação de se encantar com a própria beleza das imagens. Há momentos em que o filme parece demasiado fascinado com a textura da película, como se o grão do 16 mm fosse a sua própria substância narrativa. É o risco de olhar o país como quem o descobre e não como quem o vive. Ainda assim, talvez fosse preciso esse olhar estrangeiro — e feminino — para devolver ao Alentejo a sua dimensão cósmica, a sua melancolia sem peso, a sua verdade lenta.

O mais encantador é como Fazendeiro transforma tudo em presença física: o som do leite a cair no balde, o bater do machado na cortiça, o bip metálico da máquina que sonda o subsolo. São sons que ficam no corpo. O cinema dela pensa com os sentidos, como se a razão viesse depois da sensação. É um gesto de quem acredita que filmar é tocar e é por isso que o filme parece nascer da terra e regressar a ela.

No fundo, «As Estações» é um filme sobre o tempo. O tempo da terra, o das pessoas e o do próprio cinema. O tempo que não volta, mas deixa marcas. Maureen Fazendeiro não quer concluí-lo, quer acompanhá-lo. O filme começa e termina na terra, no som, no gesto, como um ciclo que nunca se fecha. O espectador sai dele com a sensação de ter estado dentro de um sonho antigo, desses que se lembram sem se saber quando começaram.

Maureen Fazendeiro confirma-se aqui como uma das vozes mais singulares do novo cinema português — ou talvez europeu —, herdeira ou um complemento do olhar paciente de Miguel Gomes, mas com uma doçura e uma fisicalidade próprias. O seu cinema não quer explicar o mundo, quer devolvê-lo à sua dimensão táctil, elementar. «As Estações» é um filme que pede silêncio, tempo e corpo. Que pede que se olhe o Alentejo não como um postal, mas como um espelho. E talvez seja isso que nos devolve: a sensação rara de ainda haver lugares — e pessoas — que resistem a ser esquecidos.

Um filme como uma prece. Uma carta de amor à terra e à lentidão. Uma arqueologia da memória feita de luz e poeira. E, no meio de tudo, uma certeza melancólica: o tempo passa, mas o cinema, quando é verdadeiro, fica a respirar na terra.

Título Original: As Estações Realização: Maureen Fazendeiro Origem: Portugal/França/Espanha/Áustria Duração: 83 minutos Ano: 2025

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