Já a curta «Sorda» (2021) pairava no ar uma promessa, e Eva Libertad não a quis deixar morrer, encontrou nela a centelha para a sua primeira longa, retomando o casal Ángela/Dário — ela, surda-muda; ele, ouvinte — agora às voltas com a ideia de fundar família. Maternidade e paternidade como prova de amor, ou de resistência, mas quando a criança nasce ouvinte, em vez de redenção surge fratura. O som, aquilo que devia ser ponte, transforma-se em abismo. A relação de Ángela com o filho não nasce fluida, e esse estranhamento empurra-a para um magnetismo quase autodestrutivo, como se a própria maternidade fosse ameaça à sua identidade. Um dilema íntimo, vivido em silêncio, e aqui a comparação é inevitável: «Coda», o pior dos vencedores ao Óscar (e remake guloso do francês «A Famille Bélier» de Eric Lartigau), apostava na fórmula redentora, nos conflitos amaciados em algodão doce para streaming de domingo. «Surda» não. Recusa o conforto fácil, prefere a incompletude e a fissura, até encontrar a sua força no segundo ato, onde o filme transforma-se num ensaio sensorial guiada pela perspetiva sonora de Ángela, um mergulho na surdez como território de familiaridade e abrigo (e obviamente, de um estranhamento para com o espectador ouvinte). O silêncio como linguagem, o emudecimento como casa. É nesse gesto formal que Libertad emancipa a sua obra do drama convencional, não porque fuja da tradição (ela ainda lá está, evidente, sustentada numa estrutura reconhecível) mas porque introduz um lugar de sensório (Iñarritu tentou algo idêntico em «Babel», Darius Marder aprimorou em «Sound of Metal»), uma perceção do mundo que escapa à “normalidade” sonora do cinema. A convencionalidade existe, mas sofre abalos. Torna-se um corpo híbrido, de instantes previsíveis e momentos de verdadeira invenção. Muito desse equilíbrio deve-se aos intérpretes. Miriam Garlo, no papel de Ángela, é uma tour de force: corpo tenso, olhar vulnerável, presença que carrega toda a dor e toda a obstinação da personagem. «Surda» não procura ser manifesto, nem bandeira de representação, nem sequer apoiar-se no estereótipo positivo propagado pelas tendências hollywoodescas. É mais íntimo que isso, portanto, mais humano.
Título original: Sorda Título internacional: Deaf Realização: Eva Libertad Elenco: Miriam Garlo, Álvaro Cervantes, Elena Irureta Duração: 107 min. País: Espanha, 2025

