Dizer que «Petrovy v Grippe» («A Febre de Petrov»), 2020, de Kirill Serebrennikov, se pode comparar a uma montanha russa afigura-se uma analogia fácil, mas não deixa de ser sedutora a associação, não por o produtor maioritário ser a Rússia (o resto do capital investido, que não diminui a dimensão e presença da alma russa, veio da França, Suíça e Alemanha) mas porque enquanto espectador repetidas vezes disse para comigo: será que foi sensato entrar nesta loucura, não seria melhor dar meia volta e escolher algo mais singelo como um inocente carrossel de cavalinhos a girar em vez de ficar com o coração ao pé da boca de cada vez que a narrativa sobe nos carris até ao cume da estrutura de ferro para logo a seguir vir por aí abaixo a alta velocidade? Em boa verdade, os que vejam este filme como eu vi não se admirem se aqui e além soltarem uns palavrões bem puxados devido à noção de vertigem que nos impele para uma corrida aparentemente descontrolada, numa espécie de fuga para o abismo onde só prevalecem exuberantes e fortes emoções. Enfim, passada a surpresa dos primeiros minutos e das primeiras sequências, senti que para ver este filme devíamos experimentar o estado de embriaguez emocional, parcialmente etílica, em que grande parte das personagens se encontra. Não o fiz, mas foi por uma unha negra que não fui buscar uma garrafa de vodka (mais uma associação que vale o que vale) para a emborcar até ao último suspiro, o da garrafa, entenda-se.

Dito isto, que raio de gripe ou febre, ou lá o que seja, apanhou Petrov (Semyon Serzin) fazendo com que ele mergulhasse numa semi-realidade onde as camadas sucessivas do quotidiano se sobrepõem e separam ao ritmo alucinado do delírio de quem quer seguir em frente mas vai sempre contra uma qualquer barreira inesperada que o empurra para os braços da ilusão, dos sonhos contaminados por memórias igualmente febris de um passado próximo mas distante, que assim se conjuga de forma irritantemente dialéctica no presente e no imediato da era pós-soviética? Resposta a esta pergunta retórica, só depois do jogo jogado. E esse possui as regras maradas de um casamento desfeito com uma funcionária de uma biblioteca, Petrova (Chulpan Khamatova), com quem Petrov partilha flagrantes da vida real (nomeadamente as vicissitudes de saúde de um filho comum, a quem o vírus da manhosa febre atacou) no falso conforto do novo mundo em que vivem. Mundo novo erguido sobre os escombros, como se ouve logo ao início, a propósito de saúde pública, da boca de um passageiro de um muito peculiar autocarro prenhe de gente ainda mais peculiar: “…antes recebíamos vouchers grátis para nos recolhermos num sanatório. E agora, onde estamos? Traiu-nos o velho Gorby [leia-se, Nikolai Gorbachev], o Boris Yeltsin faliu o país, o Berezovsky [Boris Abramovich Berezovsky] livrou-se dele e nomeou esta gente que nos governa. E agora?” Depois dispara-se verbalmente contra os imigrantes, acusados de inundar as cidades e desestabilizar aquilo que era a antiga amizade e solidariedade entre os povos da URSS. Daí a pouco deseja-se que a classe dirigente seja dizimada, sobretudo os judeus que supostamente se apoderaram das reservas de ouro. De repente, o real passa ao plano do irreal sem que a diferença se faça sentir de forma brutal, antes pelo contrário, será com a subtileza do granito que vemos um grupo de homens armados a recrutar “voluntários” para executar um grupo de burocratas. Depois da “limpeza” política e administrativa, Petrov, que participou na matança, segue viagem porque a vida, ou lá o que isso for no plano ficcional, continua. Dou aqui apenas um exemplo dos muitos e diversificados segmentos de grande impacto que se vão seguir em fluxos e refluxos de drama e humor negro que, para quem conheça a Rússia profunda, não será novidade nem motivo de estranheza. Diga-se que a acção não decorre em Moscovo nem em São Petersburgo, ambientes habitualmente identificados como os mais cosmopolitas, mas sim na cidade de Yekaterinburg, situada entre a região do Ural e a Sibéria. Petrov ganha a vida como mecânico, e a banda desenhada constitui uma das suas actividades extra-profissionais onde exerce o seu gosto pela ficção científica. Na verdade, mesmo considerando os caminhos cruzados e as voltas e reviravoltas da sua vida e da vida dos que o rodeiam, ao longo do filme e sobretudo no final irá ser reforçado o lado surreal de «A Febre de Petrov» quando um morto “ressuscita” para fugir a bom fugir do que lhe havia acontecido. De início, sabemos que ele se encontrava num caixão enfiado na parte traseira de uma vulgar carrinha que servia de carro funerário, facto consumado com a cumplicidade de uns homens de natureza e comportamento pouco recomendável, os mesmos que vão sacar Petrov do autocarro que o levava a caminho de casa, nunca se percebendo posteriormente ao certo qual o verdadeiro papel que ele podia assumir numa situação lúgubre como aquela. Mas o lado puzzle cinematográfico faz parte da estrutura narrativa imaginada pelo realizador e consolidada pelo muito seguro exercício de montagem, cuja manipulação das matérias fílmicas possui um respaldo de peso na definição e articulação das escalas e enquadramentos da Direcção de Fotografia, sem esquecer a notável capacidade de gerar atmosferas precisas e intensas através de uma vibrante paleta de cor, não obstante alguns excessos de fluidez imagética onde por vezes se pedia alguma contenção. Tal como vai suceder, aliás, num segmento que constitui uma das mais vibrantes mas pacíficas peças do referido puzzle, integrado no conjunto mas quase autónoma na sua especificidade, rodado a preto e branco e com um ratio de 2:35:1, que nos faz lembrar algum do melhor cinema russo e soviético dos anos sessenta. História de uma jovem actriz e da sua personagem (a Donzela da Neve) atormentada pelas circunstâncias de uma festa de fim-de-ano (na qual participa Petrov enquanto criança) e sobretudo pelas sombras de uma gravidez indesejada.

Em suma, um filme saudavelmente louco e labiríntico, que, no entanto, sabe para onde quer ir e possui os pés bem assentes no chão, que pisa com segurança e vigor, mesmo quando o mundo parece virado de pernas para o ar. Uma inegável surpresa, que nos revela um cineasta em grande forma e que chega ao grande ecrã das salas portuguesas com cerca de quatro de anos de atraso. Em 2021, «A Febre de Petrov» passou pelo Festival de Cannes, integrado na competição oficial.
Título original: Petrovy v grippe Título internacional: Petrov’s Flu Realização: Kirill Serebrennikov Elenco: Semyon Serzin, Chulpan Khamatova, Vladislav Semiletkov Duração: 145 min. Rússia/França/Alemanha, Suíça, 2021