Podia ser uma ironia. Aliás, se é uma ironia, não deixa de ser tão desconcertante quanto deliciosa. Ou seja: no primeiro dia da 78ª edição do Festival de Cannes, um dos nomes fortes foi… Charlie Chaplin! Acontece que «A Quimera do Ouro» está a fazer 100 anos e, graças à Cinemateca de Bolonha, com a colaboração de diversos arquivos da Europa e da América, e até um de um coleccionador japonês, passou a ter uma cópia restaurada em 4K — tecnicamente admirável, convém acrescentar. Foi essa cópia que abriu a secção Cannes Classics, confirmando assim que a memória do cinema continua a ser um território privilegiado no interior do festival, a ponto de ser, este ano, a zona do certame a apresentar o maior número de títulos. A força simbólica do filme — encenando a corrida ao ouro, no Alaska, como uma tragédia atravessada por um humor amargo — continua lá, como é óbvio, com todos os seus ecos no nosso presente, mas reencontramos também um Chaplin em que as componentes melodramáticas passavam a ter uma importância cada vez maior. Dito de outro modo: a agilidade temática e a depuração formal de «A Quimera do Ouro» fazem com que continue a pertencer, por inteiro, ao presente em que o revemos — com a promessa, formulada em Cannes, de esta nova cópia poder ter difusão nos mercados de todo o mundo.
