Trabalho de montagem por excelência, o projecto intitulado «One To One: John & Yoko», 2024, co-realizado por Kevin McDonald e Sam Rice-Edwards, baseia a sua eficácia na articulação entre o modelo habitualmente vanguardista do cinema experimental que usa a chamada found footage e as regras clássicas do documentário de criação. Na prática, utiliza materiais pré-existentes de diferentes origens para contextualizar o ambiente político, cultural e social correspondente ao período em que ocorreu o último concerto de John Lennon e Yoko Ono, o dito ONE TO ONE.
Na verdade, a abordagem da vida e carreira de John Lennon a solo, não obstante a companhia activa da muito controversa Yoko Ono, não se limita apenas ao acontecimento musical em si, que ocorreu em 1972 no Madison Square Garden. Vai mais longe e apresenta-nos as relações que o casal estabelecera com figuras do activismo de esquerda nos EUA, assim como com personalidades proeminentes da cultura e contra-cultura cujas preocupações produziram grande impacto na sociedade norte-americana, e não só. Entre outras, a oposição frontal ao recrutamento e ao incremento da barbárie que se vivia nos campos de batalha da Guerra do Vietname, a reivindicação dos direitos das minorias e a luta pela defesa e libertação dos presos políticos. Neste último patamar de militância, a realização não se esqueceu de evocar a violência da repressão que se abateu sobre os homens encarcerados numa prisão do Estado de Nova Iorque, maioritariamente negros, no que ficou conhecido por Massacre de Attica. Entre 9 e 13 de Setembro de 1971, uma revolta no interior da penitenciária, durante a qual os guardas prisionais perderam o controlo das operações, acabou por ser reprimida de forma desproporcional. No processo de recuperação da “normalidade” morreram 43 pessoas, um número significativo de vítimas de ambos os lados da barricada.
Mas, para além do concerto “One To One” que constitui a coluna dorsal deste documentário, não serão apenas os dramas da actualidade a moldar a sua estrutura. De forma clara, uma matéria que de forma intermitente irá surgir como contraponto ao percurso e activismo de John Lennon e dos seus mais próximos cúmplices e colaboradores será a exposição, para o melhor e para o pior, das mil e uma faces da presidência de Richard Nixon. Homem que paira como uma sombra reaccionária, presença assombrada do poder vigente, só porventura superada pela memória de um ultra do racismo e do fascismo americanos, o governador segregacionista do Alabama, George Wallace, que veremos a discursar em diversos comícios e acompanharemos aqui e além até ao momento do atentado que sofreu a 15 de Maio de 1972.

Da referida componente de found footage, saliente-se excertos escolhidos de publicidade e notícias avulsas de algum relevo, muito característicos dos anos setenta do Século XX, que ganham uma nova dimensão quando combinados com excertos dos programas de maior ou menor audiência para os quais John Lennon e Yoko Ono foram por diversas vezes convidados, mais pela controvérsia que podiam gerar do que pelo valor intrínseco daquilo que representavam do ponto de vista meramente musical. Tudo por fim inserido num contexto fílmico em que a reconstituição do apartamento de duas assoalhadas de Greenwich Village surge como uma espécie de espaço ficcional habitado pela presença fantasmática de vidas passadas. Duas assoalhadas onde John Lennon e Yoko Ono decidiram concentrar a sua vida (para se sentirem mais livres e próximos do cidadão comum) materializando a generosa ilusão de que ele e ela passavam horas a consumir o que viam no pequeno ecrã, deitados na cama em que muito de íntimo ficou por contar, mas que podemos adivinhar. Já mais secretas e interessantes se afiguram as chamadas agora reveladas e que a partir de certa altura John Lennon passou a gravar por suspeitar que estava sob escuta. Gravava o que outros eventualmente gravavam para se poder defender, se fosse necessário.
Pouco a pouco, «One To One: John & Yoko» reforça a sensação de cerco em redor do casal, e não fica por referir a questão da ameaça de deportação de John Lennon que as autoridades americanas decretaram e que posteriormente anularam. Mas o mal estava feito e o documentário vai até ao fim da linha, não escondendo o clima gerado pelo assédio a que ambos estiveram sujeitos, referindo a mudança dos dois artistas de um bairro dito boémio para o aparentemente mais seguro e sublime imóvel que dá pelo nome de Dakota Building, situado numa das mais elitistas ruas laterais do Central Park (já agora, local de rodagem do famoso «Rosemary’s Baby» («A Semente do Diabo»), 1968, de Roman Polansky).
Por razões que a razão desconhece, Kevin McDonald e Sam Rice-Edwards preferiram não falar do assassinato de John Lennon no Dakota Building, a 8 de Dezembro de 1980. De igual modo, não se dará o merecido destaque, na minha opinião, ao que sucedeu a Richard Nixon após o escândalo Watergate em 1972, considerando a presença do político nas principais linhas de orientação que dão corpo ao plano estrutural e de certo modo ideológico e crítico deste filme. São opções, legítimas, mas que francamente limitam e fragilizam o resultado final.

De qualquer modo, fica claro que o “One To One” de que se fala refere sobretudo a vontade do casal de artistas de dar voz a uma denúncia inequívoca das condições inqualificáveis em que vivia um numeroso grupo de crianças com deficiência mental, literalmente submetidas a práticas indignas de uma democracia e de um estado de direito. Falamos, e fala com desapego e coragem este filme, do que se passava na Willowbrook State School. Pela dignidade e pela saúde das vítimas de um sistema de internamento desumano, John Lennon e Yoko Ono deram a sua contribuição militante, mas será preciso dizer que esta militância humanista acabou por ser a escapatória de outros compromissos que se perfilavam mais perigosos e difíceis de sustentar nos dias de brasa que os EUA viviam no período histórico retratado.
Não se diz, palavra por palavra, mas fica implícito que esta obra reforça o retrato de duas personalidades distintas mas que souberam combinar as respectivas carreiras após a separação de John Lennon do grupo The Beatles. Por vezes, “One To One: John & Yoko” faz-nos pensar o que seria do artista rebelde se não tivesse sido um dos quatro de Liverpool, se o lastro da sua anterior fama e influência não fosse o que já era no período retratado, e se qualquer dos seus antigos companheiros instalados nas suas zonas de conforto não assumissem atitudes bem mais conservadoras do que as dele. Por fim, o que seria de Yoko Ono sem a sua associação sentimental e artística a um genial e revolucionário intérprete e compositor? “One To One: John & Yoko” não nos dá respostas. A sua virtude está em levantar questões que nos permitem reflectir sobre os limites da fama e do proveito, sem esquecer as potencialidades da música enquanto força redentora do universo. Nada mau…!
Título original: One to One: John & Yoko Realização: Kevin Macdonald, Sam Rice-Edwards Documentário 101 min. Reino Unido, 2024

