“Sonhamos” com a destruição da civilização desde o seu nascimento. Faz parte do nosso ADN. A submersão de Atlântida, a queda do Império Romano, as sete pragas do Egito, ou, como é recentemente projetado, o Apocalipse (essa ideia nunca caduca), são sintomas de um desejo autodestrutivo que encontra a sua romantização nas diferentes plataformas artísticas, nomeadamente no Cinema. Em «Reino Animal», somos levados a outro medo, talvez correlativo ao fim da Humanidade como a conhecemos; referimo-nos à perda das nossas características enquanto seres “civilizados”, ao retrocesso às nossas ancestralidades, ou seja, ao primitivismo, ao animalesco.
Essa ideia foi transmitida em grande escala no «Planeta dos Macacos: A Guerra» (2017), a terceira parte das prequelas rebeldes do clássico de Franklin J. Schaffner, em que uma misteriosa doença atinge os sobreviventes humanos do conflito com os símios sapientes, reduzindo-os a “selvagens”, explorando a hipótese de uma animalidade como erradicação do antropocentrismo. No entanto, entendemos que, mesmo ao romantizar/fabular esse desfecho, podemos extrair dele um reflexo da nossa contemporaneidade.
Thomas Cailley, o realizador de «Reino Animal», já havia conduzido a Humanidade (num contexto íntimo) ao seu próprio survivalismo no sua primeira longa-metragem «Os Combatentes». Um filme que revelou a atriz “desaparecida em combate” Adèle Haenel.
«Reino Animal» disfarça-se numa variação cine-apocalíptica, substituindo os subutilizados zumbis e outros mortos-vivos numa epidemia que gradativamente converte humanos em bestas híbridas. A narrativa segue a ótica de uma relação entre pai e filho, sendo este último inadvertidamente portador da misteriosa patologia.
Poderíamos antever o pior em «Reino Animal» se a sua produção fosse fruto dos estúdios americanos, previsivelmente preenchida com CGI à vontade ou embrenhada nos seus clichés para as grandes massas. Sendo uma produção francesa (leia-se europeia) e tecnicamente bem alicerçada, este cenário algo distópico relega-se para segundo plano, nunca ocultado, até porque a panóplia de criações antrozoológicas evoca ‘fantasmas’ da sua contemporaneidade [Covid, refugiados, populismo]. O resto é um drama familiar com algumas veias shyamalianas, nada formidável, nem vergonhosamente rejeitado.
«Reino Animal» vale pela sua sugestão, pelas possibilidades, nunca cumpridas, de como pôr termo à nossa Humanidade de maneira orgânica. Uma contemplação sobre o retorno às reminiscências naturais que, ironicamente, sempre repudiamos no âmbito do nosso progresso, tudo isso no velcro de um “monster movie”
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº100, Dezembro 2023]
Título original: Le règne animal Realização: Thomas Cailley Elenco: Romain Duris, Paul Kircher, Adèle Exarchopoulos, Tom Mercier Duração: 128 min. França, 2023
https://www.youtube.com/watch?v=Yk2k63w5P1w