Na sua segunda longa-metragem, «O Monge e a Espingarda», 2023, e como havia feito na sua obra de estreia, «Lunana: Um Iaque na Sala de Aula», 2019 (que foi candidato ao Óscar de Melhor Filme de Produção Estrangeira), o realizador Pawo Choyning Dorji não abrandou a crítica sarcástica e directa aos projectos de modernização do Butão (nação asiática situada na vertente sul dos Himalaias) cujo poder foi longos anos ocupado por uma monarquia absoluta. Recentemente, o país sofreu uma ocidentalização de valores bastante duvidosos, sobretudo visível nos grandes centros urbanos. Na verdade, ao contrário da ideia que prevalece em muitos que o consideram uma espécie de paraíso perdido, o Butão viveu graves convulsões no início dos anos noventa que obrigaram o monarca Jigme Singy Wangchuk a mobilizar o exército e a declarar o recolher obrigatório. Em grande medida devido à agitação política e social que persistiu e colocou em causa o regime, foram realizadas reformas propulsoras de uma nova ordem que veio acabar com o relativo isolamento internacional, período durante o qual foram introduzidas “modernices” como a internet e a emissão de canais de TV. Mais para a frente, a 9 de Dezembro de 2006, o Rei abdicou a favor de uma monarquia constitucional, abrindo as portas a eleições livres e democráticas, facto que levantou sérias dúvidas a muitos habitantes, sobretudo nas zonas rurais, que não percebiam a verdadeira necessidade da mobilização eleitoral num espaço geográfico dominado pelos conceitos de equilíbrio e dualidade da religião dominante, o Budismo. Numa daquelas filosofias de pacotilha, o Rei chegou a considerar a TV como uma força de unidade e esclarecimento, assim como um forte contributo para os índices de “Felicidade Interna Bruta” do Butão. Mas avisava igualmente para os perigos da sua má utilização. De facto, as populações da pequena aldeia onde decorre a acção de «O Monge e a Espingarda», pelo que vemos, não partilham no pequeno ecrã um espaço cultural próprio, mas sim uma série de produtos impostos pela massificação imperialista do gosto, doses rotineiras de MTV e aventuras do inefável James Bond (versão “Quantum of Solace”). Será pois nesta atmosfera de luta entre o velho e o novo destinada a preparar um inédito e sui-generis dever cívico, o acto eleitoral (encarado como uma dádiva do Rei), que se confrontam os grandes conflitos dramáticos do filme.

De início, um velho e respeitado lama (Kelsang Choejey) pede ao seu assistente, o jovem monge Tashi (Tandin Wangchuk), que encontre duas armas para um ritual que deverá decorrer durante a lua cheia. Está assim marcado o ritmo a que a narrativa vai obedecer. Por outro lado, um rapaz butanês, que vive de expedientes e possui conhecimentos no submundo da cidade corrompida e corruptora, serve de guia e intérprete a um coleccionador de armas americano cujo comportamento algo mafioso não ajuda a credibilizar a eventual bondade da sua missão: comprar uma antiga espingarda da guerra civil americana que, sabe-se lá como, foi parar ao Butão onde, segundo o proprietário, serviu para matar Tibetanos (os argumentistas do filme não esquecem os meandros da controversa e conturbada História do Butão). Finalmente, iremos assistir ao esforço de uma certa elite local e nacional para levar por diante a simulação das eleições, ensaio geral forçado a que um grupo de pessoas será submetido com natural estranheza, porque viver em paz e sossego já eles viviam sem precisarem de votar fosse em quem fosse. Neste contexto, uma das sequências mais acutilantes dá-nos a ver a divisão artificial provocada de fora para dentro entre quem finge gostar mais do candidato da cor vermelha e quem solta vivas ao candidato da cor azul. Há quem veja aqui uma referência aos arrufos entre Republicanos e Democratas nos EUA. Todavia, para mal dos pecados dos burocratas butaneses, saberemos que a esmagadora maioria irá preferir o candidato da cor amarela, ou seja, a cor do Rei. Não pensem que estou a revelar algo que não pudesse ser revelado. Na verdade, o que mais importa não são os resultados enunciados, mas sim as relações entre os funcionários e o povo, os pequenos diálogos que a propósito dos resultados dão ao filme a sua faceta mais acutilante e faz dele uma comédia polvilhada de uma intensa, divertida e muito eficaz mordacidade.

Mais para a frente, após múltiplas peripécias com a posse da espingarda e a aquisição de duas metralhadoras AK47 (que não seriam para ali chamadas, não fossem as voltas e reviravoltas urdidas no argumento para neutralizar os intrusos nacionais e estrangeiros daquele espaço de harmonia e paz) assistiremos a uma hilariante permuta que mete ao barulho as ditas armas e um falo de madeira de proporções XXL, objecto que nas mãos de quem por fim o segura parece representar muito mais do que a sua filosófica simbologia naquelas paragens perdidas entre a China e a Índia.

Moral da história: que vivam os índices de “Felicidade Interna Bruta”, seja lá o que isso for, entre o “peso” do falo butanês e a inutilidade impotente das armas estrangeiras.

Título original: The Monk and the Gun Realização: Pawo Choyning Dorji Elenco: Tandin Wangchuk, Tandin Phubz, Kelsang Choejay Duração: 107 min. Butão/Taiwan/França/EUA/Hong Kong, 2023

ESTREIA ESTA QUINTA-FEIRA – DIA 29 DE AGOSTO

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