Kleber Mendonça Filho é aquele realizador brasileiro que já não precisa de provar nada a ninguém, mas insiste em fazê-lo filme após filme. Depois do brilhante documentário «Retratos Fantasmas» (2023), regressa agora à ficção com «O Agente Secreto», e volta ao Recife regressando a casa e ao coração do seu cinema. Se em «Bacurau» (2019) tínhamos uma distopia sertaneja e a violência como catarse coletiva, aqui temos o thriller político, subtil e claustrofóbico, um mergulho na ditadura militar brasileira dos anos 70 sem as bengalas costumeiras: não há discursos inflamados, não há tortura mostrada no ecrã, não há ‘vilões’ a berrar slogans repressivos. Há silêncio, medo e paredes com ouvidos. E esse vazio, esse peso invisível, é ainda mais aterrador.

Wagner Moura encarna Marcelo, um professor universitário que, após se meter em conflitos com os poderes instalados — sempre aqueles que misturam Estado, negócios e uns quantos capangas à paisana — acaba a fugir de São Paulo para Recife, tentando reconstruir uma vida em ruínas. É um viúvo, tem um filho, carrega memórias, culpas e um VW carocha amarelo que já por si parece uma provocação política às autoridades corruptas. Moura não faz aqui o herói clássico; faz um homem encurralado, permanentemente no limbo entre a fuga e a paralisia, e é nesse desconforto que o filme respira.

Kleber filma o Brasil dos anos 70 como um lugar onde a opressão não precisa de gritar, basta-lhe insinuar. O detalhe histórico é minucioso, dos automóveis às roupas, dos interiores à música que ecoa em rádios enferrujados. Mas não é só reconstituição: é atmosfera, é o fantasma de uma época em que se sabia que falar alto podia custar a vida. Há um lado quase fantasmagórico na maneira como o realizador mistura ficção e registo documental, sobretudo na sequência final, onde a ponte entre passado e presente se revela de forma desconcertante.

E se o filme é político até ao osso, também é irónico, quase cómico, quando mergulha nos absurdos tropicais da repressão. Recife fervilha de histórias delirantes: um tubarão engole uma perna humana, a imprensa inventa mitos urbanos da ‘perna peluda’ e a paranoia coletiva encontra ecos na própria repressão política. De repente, o terror da ditadura cruza-se com a comédia negra, num registo que só Kleber parece conseguir equilibrar.

O elenco secundário é ouro: Tânia Maria, como Dona Sebastiana, oferece ao filme uma doçura inesperada, quase maternal, que contrasta com a brutalidade do contexto. Robério Diógenes é o polícia corrupto que parece saído de um pesadelo tropical, grotesco e patético em doses iguais. E, claro, Udo Kier aparece como cameo luxuoso, lembrando-nos que Kleber também sabe brincar com a cinefilia global.

Não é um thriller convencional, não é “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, não é «Roma» (2018), de Alfonso Cuarón, nem o premiado «Ainda Estou Aqui», de Walter Salles, do ano passado, mas poderia dialogar com todos. O filme avança devagar, saboreando cada gesto, cada sombra, cada rumor. É Antonioni na sua languidez em «Profissão: Repórter» (1975), mas também pode ser Sergio Leone no suspense que se alonga até ao insuportável e ainda é Tarantino na comédia suja e imprevista. E, ao mesmo tempo, é profundamente brasileiro, profundamente pernambucano, profundamente de Kleber Mendonça Filho.

Há quem ache que a ditadura é passado. Mas ao ver «O Agente Secreto», percebemos como a sombra se estende até hoje, como as técnicas de vigilância, intimidação e corrupção são mais recicladas do que abolidas. A política continua a produzir agentes secretos, mesmo quando já ninguém usa o crachá.

No fim, fica a sensação de que assistimos a um grande filme, ambicioso e romanesco, que não tem pressa de nos dar tudo de bandeja. Um cinema que exige paciência, mas que devolve em camadas, detalhes e silêncios mais eloquentes do que qualquer discurso. Kleber volta a mostrar porque é um dos grandes do cinema contemporâneo: filma o Brasil, mas fala para o mundo inteiro.

E Wagner Moura? Está num dos melhores papéis da sua carreira. Não como herói musculado, mas como homem frágil, cercado, que percebe que a maior violência da ditadura não estava nos porões, mas na forma insidiosa como moldava a vida quotidiana.

«O Agente Secreto» é, acima de tudo, um retrato do medo, esse que não precisa de gritar para existir. E se há filme que nos mostra como a História insiste em repetir-se, é este.

Título Original: O Agente Secreto Realização: Kleber Mendonça Filho Elenco: Wagner Moura, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Alice Carvalho, Udo Kier, Thomás Aquino, Isabél Zuaa Carlos Origem: Brasil, França, Alemanha, Holanda Duração: 160 minutos Ano: 2025

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