Alain Guiraudie sempre desafiou a moral convencional e, em «Misericórdia», leva essa inquietação ao extremo. O filme constrói uma atmosfera onde a punição – seja por um crime ou por um pecado – nunca é simples, nem objectiva. A narrativa desenrola-se numa pequena vila francesa, onde a chegada de Jérémie (Félix Kysyl) ao funeral de um antigo mentor reacende ressentimentos, segredos e julgamentos silenciosos. No centro da história está a incerteza sobre o que significa justiça e até que ponto qualquer um pode ou deve aplicá-la.

Guiraudie desfaz a ilusão de que existe um castigo adequado e proporcional para cada erro. Em «Misericórdia», a culpa é difusa e a punição parece ser ditada mais por desejos, impulsos e circunstâncias do que por um código moral claro. A relação entre Jérémie e o padre Griseul (Jacques Develay) sintetiza essa ambiguidade: é um jogo de confissão, redenção e possível condenação, onde a linha entre arrependimento genuíno e autopunição se torna indistinta.

A justiça institucional também falha. A polícia da vila hesita, os habitantes aplicam as suas próprias regras e, muitas vezes, a consequência de um acto parece arbitrária. Um crime cometido por alguém “respeitável” não é igual ao de alguém já marginalizado. O filme escancara essa selectividade, mostrando como os julgamentos são construídos não apenas sobre acções, mas também sobre quem as comete.

A cinematografia de Claire Mathon reforça essa incerteza moral. As sombras e os tons outonais transmitem a sensação de que nada está completamente iluminado – nem os personagens, nem as suas intenções. Em momentos-chave, a câmara hesita, como se tentasse encontrar a verdade e falhasse, da mesma forma que as próprias personagens falham em determinar o que é justo.

«Misericórdia» não oferece respostas, apenas questões desconfortáveis. Existe um castigo justo? O que torna uma punição legítima?

Título Original: Miséricorde Realização: Alain Guiraudie Actores: Félix Kysyl, Catherine Frot, Jean-Baptiste Durand Duração: 104’ Ano: 2024 Origem: França

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