Talvez não exista escritor que teve mais vezes a sua obra adaptada a cinema do que o austríaco Stefan Zweig (1881-1942). Desde que o alemão Rochus Gliese  produziu o filme mudo «Mutter, dein Kind ruft!» (1923), baseado na obra “Um Segredo Ardente”, que praticamente sem interrupção surgiram todos os anos, durante um século (!), uma adaptação de um texto de Zweig para cinema ou para televisão. Se bem que o autor nunca tenha escrito argumentos, a sua obra literária encontra eco no imaginário visual dos cineastas mais diversos e soube/sabe captar a atenção e interesse de tão diferentes públicos, num período tão vasto. Isto será por Zweig ter conseguido criar “as mais lúcidas tragédias modernas da eterna Humanidade” como, de forma tão elegante, escreveu Romain Rolland. A riqueza e complexidade das suas personagens e das tramas que vivem permitem que as suas obras sejam adaptadas de forma sempre renovada. Em 1939, refugiado no Reino Unido pela sua condição judaica, escreve “Coração Impaciente” (“Ungeduld des Herzens”, no original): um jovem oficial torna-se, contra a sua vontade, alvo dos interesses românticos de uma moça entrevada, filha de um rico proprietário. À força de não a querer magoar acaba por criar uma situação impossível de difícil resolução.

A história original passa-se no momento de eclosão da Primeira Grande Guerra Mundial numa província do então Império Austro-húngaro. Em «O Beijo» («Kysset»), o dinamarquês Bille August transfere a cena para a sua terra natal e faz uma adaptação bastante livre. Temos então Anton (Esben Smed), um jovem de origens modestas que pretende se tornar tenente do prestigiado regimento dos dragões: uma infantaria montada constituída sobretudo pelos filhos das elites. Tendo o seu pai, cobardemente, abandonado a si e à sua mãe, Anton tem de recorrer à ajuda de uma tia abastada que insiste em lhe lembrar da vergonha que o seu pai trouxe ao nome da família. Torna-se então imperativo que o jovem consiga o posto e aja da forma mais recta possível de forma a redimir a honra familial. A somar ao já constrito ambiente militar, o protagonista impõe a si próprio uma conduta exemplar alimentada por um medo paranóico de cair em desgraça por um qualquer faux-pas. Um desprendido acto de bom samaritano irá fazer que seja convidado para o palácio do rico Barão Løvenskjold (Lars Mikkelsen) onde conhece a sua filha Edith (Clara Rosager). O temido faux-pas  acontece quando o galante tenente convida a donzela para dançar desconhecendo a sua condição física. Solta-se o pranto da menina e materializam-se os medos do rapaz. A partir de então a sua missão torna-se no desejo de corrigir a ofensa e de agradar a Edith e ao pai desta, ao mesmo tempo mantendo uma digna distância para que nem estes, nem os seus camaradas no quartel, pensem que se está a querer aproveitar da fragilidade ou do dinheiro da moça. Este malabarismo vai se tornando cada vez mais difícil à medida que o interesse amoroso da jovem vai crescendo, assim como a  pressão do pai e da amiga Anna (Rosalinde Mynster) para que Anton condescenda aos caprichos e atenções de Edith. O fim trágico – que deixo por revelar – é inevitável.

Esta obra de Zweig é, antes de mais, uma reflexão sobre a compaixão que o autor considera poder tomar uma feição positiva ou negativa: “[…] há duas espécies de compaixão. Uma, feita de fraqueza, não passa de impaciência do coração, ansioso por se libertar, rapidamente, de um penoso enternecimento, em face da dor alheia. E existe a outra, a única que conta: a compaixão que não é sentimental mas activa, compaixão que sabe o que quer e está resolvida a suportar com paciência e a prestar ajuda até ao máximo do esforço, e ainda para além, muito para além, das possibilidades humanas. Somente quando temos coragem para ir até ao fim, até esvaziar o cálice da amargura, só quando possuímos uma grande paciência, só então podemos ajudar as outras criaturas. Só então, e à custa do próprio sacrifício.” Neste parágrafo de “Coração Impaciente”  reside o âmago da história e é – segundo o meu ponto de vista – muito bem aproveitado e trabalhado pelo realizador dinamarquês. Ao contrário do que acontece no conto original, onde não é dada uma redenção ao protagonista; no filme, o realizador constrói um final alternativo onde o herói tem a possibilidade de demonstrar esse segundo tipo de compaixão activa à custa do próprio sacrifício. Tal como nos tem habituado com a sua cinematografia, August põe a tónica na tolerância e na cura interior.

A par do tema da compaixão temos a dicotomia honra/vergonha que poderá ser considerada o próprio zeitgeist da Europa de então. Tanto na vida pública como na esfera privada, um muito rígido código de honra e dever dominava a cerceava a mentalidade da sociedade da dita Belle-Époque. Um mau passo, uma gaffe, um comportamento indelicado, mais do que serem vistos como um episódio isolado infeliz  tornavam-se numa sentença de morte social. Viver como um pária ou com o nome “sujo” era mais insuportável que a morte física: daí a existência e legitimação dos duelos ou do suicídio vistos, não como actos de loucura ou desespero, mas sim repositores da ordem moral. Segundo muitos, foi exactamente este quadro mental e moral que conduziu a Europa a uma Guerra de proporções nunca antes vistas. Para salvar a “honra nacional”, milhões dispuseram-se a sacrificar tanto a própria vida como a dos mais próximos. A mortandade e carnificina da Guerra iriam por fim a esta cosmovisão (Weltanschauung) e à bela época. Daí que, posto isto, surja a pergunta: como pode um público contemporâneo, com um quadro moral e de valores muito diferente, receber e entender esta história?

Como já falámos, a obra de Zweig tem sido, recorrentemente, levada a cinema e televisão (para além das adaptações teatrais). Só de “Coração Impaciente” temos uma versão de 1946, de Maurice Elvey: «Beware of Pity»; uma sul-americana de 1960, de Tito Davison: «Impaciencia del Corazón»; outra turca, em 1970, de Bilge Olgaç: «Merhamet»; ainda uma francesa realizada, pelo autor de «La Cage aux Folles», Édouard Molinaro em 1979: «La pitié dangereuse»; e ainda a mini série televisiva russa «Lyubov za lyubov», produzida em 2023, já depois do filme em análise. Deve-se ainda acrescentar «The Grand Budapest Hotel» (2014) que, segundo Wes Anderson, foi profundamente influenciado por esta obra do autor austríaco para a construção das suas personagens. Ora, em todos estes tempos e lugares, tanto os realizadores como o público souberam encontrar algo em que se identificaram. A imensa humanidade deste romance literário torna fácil uma empatia com as personagens: todos nós, num determinado momento, sentimos a opressão e intolerância social ou caímos na tentação da compaixão fácil e da comiseração. Também porque há no livro e sobretudo no filme, um reconhecimento sincero e não condenatório das fraquezas humanas e do lado mais negro do Amor. Os temas da complexidade humana sempre foram caros a Billi August e aqui consegue um intrincado e delicado trabalho de representação e cinema, mais feito de silêncios e não ditos, num ritmo lento e sussurrado, que nos chega como uma melodia de Saint-Saëns.

Título original: Kysset Título internacional: The Kiss Realização: Bille August   Elenco: Esben Smed, Clara Rosager, Lars Mikkelsen Duração: 116 min. Dinamarca, Noruega, Hungria, 2022

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