«Midas Man» («Midas Man e os Quatro de Liverpool»), 2024, dirigido e concluído por Joe Stephenson (após outros dois realizadores abandonarem o projecto, a saber, Sara Sugarman e Jonas Akerlund), podia ser um “Midas Film” se, em vez de uma produção britânica e independente, fosse um projecto bafejado pelos milhões no quadro da indústria pesada, e não apenas no da norte-americana. Mas, no plano meramente financeiro, o défice que esta obra apresenta e que podia resultar numa irremediável fragilidade dos pressupostos e ambição que seguramente estavam na base do seu projecto fílmico, permite uma abordagem porventura mais sincera e honesta do que foram os primeiros passos de um empreendedor visionário. Falamos do recatado e muito “british” Brian Epstein (interpretado por Jacob Fortune-Lloyd), sobretudo a partir do momento em que, entusiasmado pelo improvável negócio discográfico que abraçara e que lhe corria menos mal, procura entrar num meio que ao princípio não dominava nem era o dele do ponto de vista familiar e existencial, ou seja, o lado marginal e rebelde dos bas-fonds e clubes nocturnos frequentados por uma democrática mistura de cidadãos com diversas origens sociais, onde por vezes despontavam grupos musicais prometedores mas algo distanciados do mainstream em que davam cartas os artistas e profissionais já consagrados. De facto, será nessas noites e madrugadas de boémia, situadas nos quarteirões opostos aos das suas muito privadas raízes académicas e de classe, que o futuro manager de “The Beatles” irá encontrar uma então semi-obscura banda composta por quatro rapazes oriundos da classe operária de Liverpool, num antro de exaltação e fumarada significativamente baptizado “The Cavern”. Foi aí que descobriu, e sobretudo sentiu, a razão do furor gerado em redor de quatro jovens vestidos com blusões de cabedal ao estilo dos rockers da época, que eles imitavam reproduzindo covers do rock’n roll com alguma garra e êxito junto de um público cada vez mais vasto. Na verdade, actuações que podiam ser consideradas o premonitório cartão-de-visita e a primitiva rampa de lançamento de uma posterior e muitíssimo bem-sucedida carreira que “Midas Man”, o filme, irá seguir até ao ponto final de “Midas Man”, o homem, na prática o fim da linha para Brian Epstein que, como se sabe, morreu de uma overdose, alegadamente acidental, provocada pelo consumo excessivo de anfetaminas e barbitúricos. Tinha 32 anos.

Na verdade, “Midas Man”, na designação original, sublinha de forma muito clara o protagonismo singular de Brian Epstein, e não o eventual e inevitável co-protagonismo associado aos quatro “Beatles”. Trata-se aqui de acompanhar os anos de glória de uma associação vencedora, mas igualmente as dores de crescimento de uma relação que ao início não parecia nada fácil. De um lado, um rapaz conservador, vagamente romântico, ambicioso mas um pouco ingénuo, menino querido de uma família de empresários judeus, homossexual recalcado, incapaz de soltar um palavrão mas com coragem ou desespero suficientes para se arriscar nos caminhos sombrios e perigosos da sexualidade marginal em busca de parceiros de ocasião muito pouco recomendáveis. Encontros furtivos que nem sempre corriam bem, antes pelo contrário. Do outro, quatro rapazes com a escola da vida bem vivida, habituados ao pouco de que faziam muito e a comer e beber não importa o quê e a que horas fosse, desde que os deixassem ser eles próprios na sua essência proletária e naturalmente no contexto dos seus gostos e das suas idiossincrasias musicais. Basta recordar aquilo que o argumento não escamoteia, a dificuldade de encontrar uma marca que estivesse interessada num grupo musical que, visto de longe, não oferecia grandes sinais de respeitabilidade institucional e que, ironicamente, irá acabar por gravar por obra e graça de Brian Epstein e do produtor George Martin, acreditem ou não, numa editora discográfica especializada em comédia, a Parlophone. Seja como for, os dados estavam lançados. E, mesmo sem a presença na banda sonora musical das canções que levaram “The Beatles” ao sétimo céu da fama mundial (mais famosos do que Jesus Cristo, como disse John Lennon numa controversa conferência de imprensa que muita polémica e histeria gerou), este “Midas Man” segue em frente. De facto, a partir desse momento fundador de uma nova era, já consolidada por contrato e com a entrada em cena de Ringo Starr que veio substituir Pete Best na bateria, o fluxo narrativo desvia a atenção para o percurso íntimo e relativamente mais secreto de Brian Epstein. Da ficção, baseada em factos reais, mas não obstante ficção, destaca-se o modo como a sua orientação sexual e em particular a sua relação com John Tex Ellington, actor americano que o seduzira em Nova Iorque, se prolonga em Londres num relacionamento problemático que irá acentuar a sua espiral de dependência relativamente a drogas e álcool.

Numa análise genérica, “Midas Man” cumpre os mínimos no que diz respeito ao “retrato” de uma época, conseguindo aqui e além ultrapassar o espartilho orçamental para nos apresentar uma reconstituição necessária e, digamos, suficiente (com a ajuda preciosa de materiais de arquivo) das atmosferas e dos ambientes em que as personagens se movimentavam. Propõe ainda a visão desencantada (que numa outra e preguiçosa perspectiva áudio e visual podia ser muito mais linear e redutora) da figura protagonista que abraçou o risco, perseverou e acabou por sair vencedora na área musical e no modelo de negócio pelo qual optou. Mais, a produção soube usar a seu favor a carreira e a informação associada de alguém de quem se conhece a face A e a face B de cor e salteado, se pensarmos na quantidade daqueles que acompanham o histórico e as histórias da música popular anglo-saxónica. E fê-lo com a inteligência suficiente para evitar cair na armadilha da simples biografia do homem por detrás de “The Beatles”, o chamado “quinto Beatle”, como lhe chamou Paul McCartney. Para isso, o argumento de “Midas Man” não hesitou em abrir-nos as portas para alguns dos seus vícios privados e algumas das suas públicas virtudes. Uma mescla de condimentos agridoces, para contrariar eventuais derivas melodramáticas. Todavia, admito, no final das contas sabe a pouco. Mas o que se deixa ver vê-se bem.
Título original: Midas Man Realização: Joe Stephenson Elenco: Jacob Fortune-Lloyd, Emily Watson, Eddie Marsan, Ed Speleers Duração: 112 min. Reino Unido, 2024