O mini-ciclo continua com uma abordagem muito incisiva da prostituição no início do Século XX, mais precisamente no ano de 1900, num Japão onde a prepotência machista prevalecia como força dominante nas relações entre sexos, não apenas nos lupanares mas também no seio do casamento mais puritano, para usar uma definição europeia de igual valor e intensidade discriminatória. De facto, «Hone-made Shaburu» («Roída Até Ao Osso»), 1966, realizado por Tai Katô (1916-1985), concentra a atenção na história da jovem Kinu, que com apenas dezoito anos será vendida pela família para servir num bordel. Nele, fazem-na passar por virgem para deleite dos clientes que, digo eu, gostavam de ser enganados ou eram facilmente ludibriados pela jovem que, perante a óbvia experiência adquirida e por força das circunstâncias, irá atingir uma maturidade que não possuía quando iniciou a sua carreira, permitam-me a expressão, na horizontal. Histórias destas aconteciam com frequência face aos padrões de pobreza que prevaleciam sobretudo entre as raparigas oriundas das regiões rurais menos favorecidas. De início, Kinu vai descobrir um mundo novo e um sentimento de verdadeiro prazer pelo facto de no prostíbulo se poder alimentar com alguma qualidade e relativa abundância. Naquela casa de passe podia dormir numa cama confortável que antes era um luxo inatingível, e usava vestuário de qualidade que lhe dava a ilusão de um estatuto socialmente relevante que outrora seria negado. Mas rapidamente irá perceber que não há almoços grátis e que os esquemas e expedientes urdidos pelos seus patrões não obedeciam senão a um propósito: explorá-la até ao osso, mantendo através de matemáticas manhosas uma dívida eterna que a impedia de ser resgatada daquela vida, um autêntico estado de submissão e escravatura sexual.

Patente ao longo da narrativa, a violência das relações pessoais no colectivo da casa (que literalmente encerra as prostitutas, sempre vigiadas e reprimidas na sua liberdade individual) manifesta-se de forma ampla e aberta e rivaliza com a energia com que os diálogos se estabelecem entre as diversas partes envolvidas no comércio do corpo a que não se dá o direito de possuir alma própria. No plano da planificação, o realizador e o director de fotografia combinaram esforços para, no domínio visual, se encontrar uma correspondência com essa violência, sempre latente. Conseguem atingir esse objectivo acentuando determinadas opções estéticas que fazem o espectador ver o que se passa, não de forma nua e crua mas dissimulada, através da colocação da objectiva por detrás de painéis, escadas, varandas interiores, fragmentos do espaço de uma casa japonesa com múltiplos espaços de convívio e habitação. Tal cria a ilusão de sermos uma espécie de espiões voyeurs do que se passa no interior do bordel e gera em nós uma estranha segurança incómoda que nos permite, por outro lado, melhor absorver o desenrolar das contradições entre as jovens colegas de profissão e os perigos e ameaças provocados pelos seus clientes. Por fim, Kinu será resgatada e aparentemente assiste-se a um final feliz. Mas será mesmo assim? Não se irá repetir e multiplicar num outro modo de vida, apelidado de normal, a mesma dependência viril que moldava o conjunto da sociedade japonesa e que ainda hoje não está completamente apagado do horizonte existencial nipónico, ao contrário do que por vezes somos levados a crer? «Roída Até Ao Osso» não será uma obra-prima da produção cinematográfica dos anos sessenta do século passado, mas não deixa de ser um filme importante para darmos conta de um assunto cujos ecos prevalecem activos no imaginário secreto e na má-consciência de muitos países.

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº114, Janeiro 2025]

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