Não chegou a ser o «Parasitas» de 2022 mas podia tê-lo conseguido com uma perna às costas. E ainda assim, «Drive My Car» marcou a malfadada 94ª cerimónia dos Óscares pelo simples facto de, no final da noite, saltar à vista como o filme mais relevante dos premiados, independentemente da categoria em que venceu (melhor filme internacional). Ironias à parte, este vai ficar na memória como o título da definitiva ascensão do japonês Ryûsuke Hamaguchi no dito panorama internacional, o realizador que desde «Happy Hour: Hora Feliz» (2015) tem vindo a despertar as atenções para um cinema autoral profundamente alicerçado no trabalho/processo de “revelação” dos seus atores, dentro da própria lógica performativa dos filmes. Digamos, um cinema que explora com paciência rara o fôlego das emoções latentes. «Drive My Car», adaptando livremente um conto homónimo de Haruki Murakami, é a prova máxima dessa especificidade da génese fílmica de Hamaguchi e da sua aptidão para oferecer movimento à vida secreta das palavras.
Neste caso, não são as palavras de Murakami que interessam tanto – o conto é apenas um motivo que o cineasta usou e expandiu – mas sim as de Anton Tchékhov. Entenda-se: da prosa do primeiro Hamaguchi retirou apenas a situação de um homem a ser conduzido no seu carro por uma jovem motorista e a ligação que se estabelece entre os dois, cada um guardando as suas tragédias pessoais. Mas «Drive My Car» cresce em complexidade humana quando associa o protagonista, um ator chamado Kafuku (Hidetoshi Nishijima), à peça «O Tio Vânia», que ele, vindo de Tóquio, acaba por encenar num festival em Hiroxima; uma peça especial, porque estabelece um vínculo com a falecida esposa dele. E é no seu método de ensaio que está a chave para o método usado por Hamaguchi: a leitura repetida do texto, sem sentimentos simulados, até chegar à “verdade” da personagem contida nos próprios atores. Este método torna-se ainda menos óbvio quando esses atores, de diferentes origens, dizem o texto na sua língua materna.
É difícil resumir a grandeza de «Drive My Car» na combinação de todos os elementos que produzem, com subtileza, a sua força melodramática. Estamos perante um épico sereno, animicamente urbano e maravilhosamente capaz de criar correspondências íntimas através de uma escrita ultra afinada, que passa pela gramática da lente. É uma das estreias mais belas do ano e a confirmação suprema do talento de um dos melhores cineastas japoneses da atualidade. Não tenhamos medo de lhe chamar “obra-prima”.
Título original: Doraibu mai kâ Realização: Ryûsuke Hamaguchi Elenco: Hidetoshi Nishijima, Toko Miura, Reika Kirishima Duração: 179 min. Japão, 2021
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