Na antecipação da nova série intitulada MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS IV, Daniel Pereira e Miguel Patrício da produtora e distribuidora THE STONE AND THE PLOT assinaram uma nota de imprensa onde apontaram os critérios que seguiram para a programação. Passo-lhes a palavra: “ (…) Filmes que não estrearam nem nunca foram exibidos em Portugal. Filmes que não estão nem estiveram disponíveis em edições DVD ou Blu-ray, em nenhum lugar do mundo. Filmes que não se encontram disponíveis, com legendas, nos fóruns de pirataria mais completos da internet”. Este último aspecto parece estranho mas não deixa de ser importante, porque na verdade em alguns casos será ali que os cinéfilos encontram os filmes “esquecidos” ou pura e simplesmente ignorados pela grande distribuição e, caso mais lamentável, habitualmente preteridos para um segundo plano na oferta das plataformas de streaming e, ainda mais difícil de compreender, desconsiderados inclusivamente pelos canais ditos de orientação cultural, como os de serviço público, por esse mundo fora. Não, não falo apenas de Portugal, porque mesmo assim no nosso país os cinéfilos que não viram no grande ecrã as obras propostas nas séries anteriores, onde se incluem alguns clássicos indiscutíveis da cinematografia nipónica (e, já agora, algo desconhecidos no ocidente, mas não no Japão), puderam vê-los nos canais por cabo e até num bom número de sessões especiais em sala. Mas compreendo perfeitamente o sentido de militância que Daniel Pereira e Miguel Patrício experimentaram porque o senti quando organizei há uns anos uma grande retrospectiva de cinema japonês que durou vários meses na então RTP2. E sei bem a dificuldade de lidar com as empresas japonesas. Gosto da sua disciplina, mas confesso que podem ser aqui e além muito complicadas. Foi por isso que comprei para exibição os filmes desse ciclo aos alemães da BETA FILM que já haviam realizado os contactos prévios e acordado o valor dos respectivos direitos. Mas basta de falar de princípios, critérios e modelos de programação e passemos a analisar os filmes da agora quarta edição de MESTRES JAPONESES DESCONHECIDOS IV.

E começa bem, com «Haha No Omokage» («Imagem de Uma Mãe»), 1959, realizado por um mestre já nosso conhecido, o grande Hiroshi Shimizu (1903-1966), de quem foi visto na série anterior o magnífico «Kiri No Oto» («O Som do Nevoeiro»), 1956. Situado num Japão que apaziguara muitas das feridas abertas pela derrota na Segunda Guerra Mundial mas não as sarara completamente, a mudança política fazia-se sentir na macroestrutura económica com óbvias repercussões na dinâmica social onde imperava como sempre a questão da família enquanto núcleo central da sociedade, garantia de um almejado equilíbrio pacificador. Pouco a pouco regressava-se a uma certa normalização de cariz conservador. Neste contexto, vamos ver como os destinos de um homem e de uma mulher se cruzam por força de um “arranjinho” urdido por quem os queria ver casados como “manda a lei”. Só que ambos possuem uns “penduras”, como são referidos pelos familiares mais próximos, ou seja, dois filhos menores. Depois de um curto namoro, que começa ironicamente com o pedido envergonhado de um copo de água e acaba com a degustação de saquê, passados dias o casamento realiza-se. Michio, o rapazinho que ocupa no filme o lugar de verdadeiro protagonista, não consegue deixar de recordar a falecida mãe de quem mantém um retrato que venera como se fosse um ícone sagrado. Tem igualmente um pombo que lhe fora dado pela progenitora e que ele cuida como se fosse o seu bem mais precioso. Michio depara-se com o insistente pedido da família para que ele trate a nova mulher do pai por “mãe”, algo que não consegue. Digamos que, num Japão “normalizado” e até um pouco conformista, o rapaz constitui de forma algo inocente a peça subversora que não aceita enterrar o passado, a sua visceral ligação a quem lhe deu a vida. Boa parte do filme vive desta contradição, e a grande força do argumento reside no modo como se faz a gestão do confronto entre os sentimentos mais secretos das personagens e a sua resolução no quadro das vicissitudes existenciais de um quarteirão popular. Perto do final, uma redacção sobre a mãe da autoria de Michio, revelada pelo seu professor mas lida no seio familiar, resume de algum modo o que até ali víramos, sintetizando a luta interior de Michio na defesa de uma questão de princípio, o amor devido a uma mãe ausente mas presente na materialidade do seu mundo, a fotografia, o pombo, e nos sinais espirituais como a memória constante da mãe e a recusa em chamar mãe a outra mulher. Nessa sequência de antologia podemos perceber como a mestria de Hiroshi Shimizu não era conceito vão. Nas palavras simples de uma criança encontramos a sabedoria maior que nos faz compreender as motivações profundas de um silêncio, primeiro o luto, e depois a razão maior para continuar a viver e superar a morte.
Destaque ainda para a magnífica fotografia a preto e branco e os magníficos planos sequência com plena e rigorosa utilização do ecrã largo. Travellings frequentes que não procuram apenas emprestar movimento mas servem para reenquadrar no mesmo plano os diversos fragmentos da acção sobre os quais se faz incidir a atenção do espectador.
Foi este o derradeiro filme do realizador que bem merecia uma retrospectiva mais alargada para deixar de ser no Ocidente um mestre japonês “desconhecido”.