Encarado como um dos títulos mais esperados da competição pela Palma de Ouro de 2025, «Fuori», com Valeria Golino, pode conseguer, finalmente, assegurar ao cineasta Mario Martone o prestígio (em forma de troféu) que Cannes, há muito tempo, tem vindo a aproximar dele. A sessão será na terça-feira (dia 20). Na sua trama, a escritora Goliarda Sapienza encontra-se na prisão por causa de um delito que nunca foi devidamente comprovado. Após a sua libertação, a amizade entre ela e as outras detidas continuou, o que causou desentendimentos nos círculos intelectuais que ela frequentava. A chegada da projeção desse filme fez com que a Croisette – e o público em Itália – redescubra o que Martone fez de mais potente. No caso, o tocante «Nostalgia», revelado em solo cannoise em 2022, é o filme que mais o impulsionou a abrir caminhos para que ele tivesse ampliado a sua visibilidade. Na Côte d’Azur, a Fnac deu-lhe um empurrão, ao colocar essa fita em destaque entre as suas atrações de maior relevo na seção de DVDs e de Blu-Ray.  

Há tempos, desde «A Grande Beleza» (2013), de Paolo Sorrentino, que uma produção da pátria de Federico Fellini não mexia tanto com os corações de cinéfilos e não movia tanto as bolsas de apostas de Cannes como «Fuori» faz agora. Coroado há 30 anos com o Prémio Especial do Júri de Veneza, por «Morte di un Matematico Napoletano» (1992), Martone concorreu em Cannes, em 1995, com «L’Amore Molesto», e lá voltou, via Un Certain Regard, em 1998, com «Teatro di Guerra». Nada do que fez nos anos 1990 ou nas duas últimas décadas se compara ao que ele entrega no drama com elementos de thriller de máfia em «Nostalgia», exibido pela primeira vez na competição pela Palma de Ouro, há três anos. É um filme que teve, na Croisette, um efeito de “descoberta”, embora o mais correto, diante do currículo do realizador, seria falar em “redescoberta”, em “reinvenção”, seja dele, seja dos códigos cinematográficos da sua pátria. Pátria que nos deu gigantes: Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini. Pátria próspera na seara dos filmes de género, seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no western (com as “macarronadas” de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) e nos épicos de gladiador (o Peplum). A pátria que minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo as suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer as longas da franquia “Trinity”, sob a guilhotina de Berlusconi, restando visibilidade a poucos cineastas. Giuseppe Tornatore (com «Cinema Paradiso») e Roberto Benigni (com «A Vida É Bela») souberam bem casar as receitas com a Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Nanni Moretti se edificou entre comédias políticas («O Caimão» [«O Crocodilo», no Brasil]) e melodramas («O Quatro do Filho»).

Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firmes, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas; e o até hoje imparável Marco Bellocchio («Vincere»). Mas esses dois nomes são crias dos anos 1960. Martone, não. Ele é um moderno tardio, que não se fez na liquidez da pós-modernidade. Mas ele teve a sagacidade de entender parte das chagas deste nosso tempo, como é o caso da gentrificação; do emasculamento; da perda da honra; da destruição dos signos de fé, por apostasia ou por banalização. E esse sagaz olhar rendeu a Cannes um presente em forma de 1h57 de filme, universalíssimo.

Pierfrancesco Favino – que filmou «O Traidor» de Bellocchio no Rio de Janeiro – é o aríete com o qual Martone avança rumo à consagração, com os seus ângulos de câmara vívidos e inquietos, a explorar a profundidade de campo da Nápoles para onde o seu protagonista regressa. Favino esteve na abertura da Quinzena de Cineastas com «Enzo», de Robin Campillo.


Favino tem 95% de “Nostalgia” para si. Os 5% que sobram se dividem entre o padre Rega (Francesco di Leva) e o bandido Oreste (Tommaso Ragno, um sósia do brilhante Roney Villela). Este foi o maior amigo que Felice (Pierfrancesco Favino), construtor e dono de uma empreiteira no Egito, teve nos seus anos de formação.

No início da longa, Felice regressa à sua cidade natal par cuidar da mãe doente. É um terço que arranca de forma doce, onde a câmara do fotógrafo Paolo Carneva gira em espasmos, caçando um quadro que fuja da obviedade. Caça, caça… e consegue. Sempre. Passada essa introdução com ares melodramáticos, de mãe e filho, uma pergunta feita por Felice muda as rédeas da narrativa: “Onde está Oreste?”. No passado, os dois eram como unha e carne, até um crime mudar tudo. Ao tentar entender o que foi feito daquele amor de ontem, amor de “bromance”, de pura amizade, Felice começa a (re)encaixar-se numa paisagem que abandonou há 40 anos. Mas nem sempre a paisagem nos quer de volta. Nem sempre aquele a quem confiamos o nosso coração deu valor à imolação que fizemos, fortuitamente. O saldo é a ressaca. Mas nem toda ressaca é só de álcool, ou só de sal. Eis o que Martone nos mostra, numa longa-metragem devastadora.

Longe da disputa pela Palma de Ouro, na montra (também competitiva) da mostra Un Certain Regard, o contagiante drama de CEP chileno «La Misteriosa Mirada del Flamenco» [foto], de Diego Céspedes, virou “O” acontecimento de Cannes em 2025. Filas gigantes se formaram nas projeções dessa reconstituição histórica da vida no norte do Chile no início dos anos 1980, numa área mineira na qual um cabaré de mulheres trans e travestis enfrenta o boom do SIDA [AIDS]. Tudo é visto pelos olhos de uma menina, Lidia (Tamara Cortes), tratada como filha pela performer Flamenco (Matías Catalán), é alvo de transfobia. Na trama, o contágio do HIV é tratado com misticismo, numa crença de que a “peste” se espalha pela troca de olhares.

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