Como celebrar o centenário de uma lenda sem parecer que se está, precisamente, a celebrar o centenário de uma lenda? Ou: como trazer à matéria desengraçada dos nossos dias a memória de alguém que habita o imaginário dos espectadores “antigos”? «Marcello Mio», de Christophe Honoré, é uma eloquente resposta a ambas as perguntas. O tipo de filme que planta referências sem se deixar asfixiar por elas, e que não se esgota num virtuoso exercício de cinefilia, antes procurando aquela liberdade sem nome que não nos deixa adivinhar o passo seguinte, apesar da fidelidade à figura recordada.

Dito isto, é preciso conhecer «Noites Brancas» (1957), de Luchino Visconti, e «A Doce Vida» (1960), «Oito e Meio» (1963) ou «Ginger e Fred» (1986), de Federico Fellini, para desfrutar de «Marcello Mio»? Digamos que dominar a anatomia destes filmes não é obrigatório, mas como em qualquer deambulação cinéfila, o prazer do espectador aumenta conforme este segue as pistas de um mapa emocional. No caso, um mapa explorado pela filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve: Chiara Mastroianni. Ela que, numa espécie de ensaio identitário e busca interior, começa a vestir-se como certas personagens emblemáticas do pai – isto combinado com o cigarro na boca, permanentemente aceso, e a insistência em falar italiano –, enquanto os outros à sua volta se vergam à evidência de que Chiara… “é” Marcello.

Em Cannes, onde o filme teve a sua estreia há um ano, houve quem lhe chamasse, de forma pejorativa, “cine-narcisismo”. Mas o que tem de danoso uma atriz, impressionantemente parecida com o pai, usar essa semelhança e (dupla) filiação para navegar o cinema que lhe está no ADN? Mais: se há alguém com propriedade para fazê-lo é, de facto, Chiara. Sem abuso de maneirismos, e com dois brilhantes companheiros de tela – a mãe Deneuve e o sempre delicioso Fabrice Luchini –, ela não deixa de ser um corpo com a angústia do presente, vivendo-a com um genuíno amor de cinema. Que é também, ou sobretudo, um amor familiar, esse privilégio indizível.

Há, por tudo isto, um fulgor comovente em «Marcello Mio», que não passa pelo jogo básico da imitação ou pela abordagem arrumadinha das recordações. Pelo contrário, a Honoré interessou a “desorientação” da felicidade, uma maneira de evocar, através da vertigem afetiva e da semelhança física, um ator digno da palavra “devaneio”. É o que aqui acontece: sem saber para onde vamos, seguimos o reencontro de Chiara com a memória íntima de alguém que faz parte da grande memória coletiva do Cinema.

TÍTULO ORIGINAL: Marcello Mio REALIZAÇÃO: Christophe Honoré ELENCO: Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve, Fabrice Luchini ORIGEM: França, Itália DURAÇÃO: 120 min. ANO: 2024

Fotos © Les-Films-Pelleas

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