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RAN – OS SENHORES DA GUERRA, 1985
rativa de Shakespeare, o enredo começa indiferença. É uma presença ousada, E por cima da humanidade que se auto-
por uma decisão precipitada do patriar- essencial para diferenciar personagens destrói? As nuvens, motivo recorrente
ca: Hidetora decide deixar o império aos (e exércitos), mas também como im- ao longo do filme, num céu progressiva-
três filhos, sob liderança do mais velho. pacto do caos humano numa natureza mente mais escuro. De destacar a cena
Segue-se uma decadência no caos, que impassível. Quanto mais intensa a cor, fabulosa em que um soldado atravessa
tudo engole (irmãos, senhores da guer- maior a destruição e a ausência de es- a planície em plena sintonia com a som-
ra, samurais e inocentes), fomentada perança. No meio dos vermelhos, dos bra de uma nuvem que se desloca por
pela sede insaciável de poder. Enquanto amarelos e dos azuis, a figura branca de cima de si, numa predestinação simbó-
isso, Hidetora vagueia entre batalhas, Hidetora desassossega. Fantasmagóri- lica.
entre um estado de reconhecimento e co, símbolo do declínio, do fim de uma
demência, entre as possibilidades de in- era, da loucura, mas também da impos- No seu 40.º aniversário, «Ran – Os Se-
ferno e paraíso. Tatsuya Nakadai, o ator sibilidade de escapar a uma existência nhores da Guerra» continua a mostrar
que interpreta Hidetora, é magistral nes- cíclica da humanidade, em que nem a a longevidade da mestria do cineasta
ta dança entre o poder em declínio e a redenção é suficiente para quebrar a japonês. Pertinente e inquietante, tragi-
fragilidade crescente do velho senhor violência. camente belo, numa ode intemporal ao
feudal. épico histórico e ao próprio cinema.
A tragédia constrói-se neste jogo de
Enquanto via o filme, há uns dias, dei visuais e cores, mas também no ritmo Please, Rewind é uma rubrica de lem-
por mim a fazer pausas. Vezes sem con- pausado, nos axial cuts metódicos da brança e (re)descoberta do cinema
ta, só pela simples vontade de agarrar edição, nas coreografias estilizadas e no dos anos 70, 80 e 90, onde se revisi-
o instante e imobilizar a cena. Há algo dinamismo entre a música e o silêncio tam filmes com impacto na história
de magnético na forma como a cor é (de que a batalha pelo castelo número do cinema e na nostalgia pessoal de
usada, contra um cenário de guerra e dois é exemplo claro). cada um de nós.

