Page 117 - Revista Metropolis 123
P. 117

RAN – OS SENHORES DA GUERRA, 1985





            rativa de Shakespeare, o enredo começa   indiferença. É uma presença ousada,   E por cima da humanidade que se auto-
            por uma decisão precipitada do patriar-  essencial para diferenciar personagens   destrói? As nuvens, motivo recorrente
            ca: Hidetora decide deixar o império aos   (e exércitos), mas também como im-  ao longo do filme, num céu progressiva-
            três filhos, sob liderança do mais velho.   pacto do caos humano numa natureza   mente mais escuro. De destacar a cena
            Segue-se uma decadência no caos, que   impassível. Quanto mais intensa a cor,   fabulosa em que um soldado atravessa
            tudo engole (irmãos, senhores da guer-  maior a destruição e a ausência de es-  a planície em plena sintonia com a som-
            ra, samurais e inocentes), fomentada   perança. No meio dos vermelhos, dos   bra de uma nuvem que se desloca por
            pela sede insaciável de poder. Enquanto   amarelos e dos azuis, a figura branca de   cima de si, numa predestinação simbó-
            isso, Hidetora vagueia entre batalhas,   Hidetora desassossega. Fantasmagóri-  lica.
            entre um estado de reconhecimento e   co, símbolo do declínio, do fim de uma
            demência, entre as possibilidades de in-  era, da loucura, mas também da impos-  No seu 40.º aniversário, «Ran – Os Se-
            ferno e paraíso. Tatsuya Nakadai, o ator   sibilidade de escapar a uma existência   nhores da Guerra» continua a mostrar
            que interpreta Hidetora, é magistral nes-  cíclica da humanidade, em que nem a   a  longevidade  da  mestria  do  cineasta
            ta dança entre o poder em declínio e a   redenção é suficiente para quebrar a   japonês. Pertinente e inquietante, tragi-
            fragilidade crescente do velho senhor   violência.                 camente belo, numa ode intemporal ao
            feudal.                                                            épico histórico e ao próprio cinema.
                                              A tragédia constrói-se neste jogo de
            Enquanto via o filme, há uns dias, dei   visuais e cores, mas também no ritmo   Please, Rewind é uma rubrica de lem-
            por mim a fazer pausas. Vezes sem con-  pausado, nos axial cuts metódicos da   brança e (re)descoberta do cinema
            ta, só pela simples vontade de agarrar   edição, nas coreografias estilizadas e no   dos anos 70, 80 e 90, onde se revisi-
            o instante e imobilizar a cena. Há algo   dinamismo entre a música e o silêncio   tam filmes com impacto na história
            de magnético na forma  como a cor é   (de que a batalha pelo castelo número   do cinema e na nostalgia pessoal de
            usada, contra um cenário de guerra e   dois é exemplo claro).      cada um de nós.
   112   113   114   115   116   117   118   119   120   121   122