Page 171 - Revista Metropolis nº122
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tinha sempre o sabor metálico do perigo. E aqui chegamos ao essencial: «Lavagante» não é só
um tributo ao passado, é um murro no estômago
O elenco é soberbo. Júlia Palha tem talvez a melhor do presente. Em tempos de amnésias seletivas, de
interpretação da sua carreira até agora: Cecília é ao revisionismos brandos e de jovens que já nem sabem
mesmo tempo sedutora e enigmática, cúmplice e o que foi a PIDE, o filme lembra-nos que a liberdade
vítima, lavagante fêmea que atrai para a armadilha. custou caro. Que houve quem amasse, sofresse e
Francisco Froes dá a Daniel uma vulnerabilidade morresse para que hoje possamos entrar numa sala de
rara, um homem dividido entre a paixão e a convicção cinema sem pedir licença à censura.
política. Nuno Lopes, como sempre, rouba as cenas
em que aparece, Diogo Infante oferece uma frieza É raro: um filme português que combina rigor
calculada que arrepia, e Tomás Alves, Leonor Alecrim literário, densidade política e poder emocional, sem se
e Rui Morrison completam um conjunto que prova perder em excessos autorais ou timidezes televisivas.
que o cinema português tem intérpretes à altura da Lavagante merece público, merece debate, merece
sua literatura. existir como ponte entre gerações. Não é só um
grande filme português — é uma lição de memória
Visualmente, «Lavagante» é de uma beleza sombria. embalada numa história de amor e engano que,
Barroso, que acumula realização e direção de paradoxalmente, nos devolve a esperança.
fotografia, filma com a luz certa do medo: interiores
sufocados, ruas que parecem sempre vigiadas, um país Se o público não o for ver, a culpa já não será do
em que até o sol de verão carrega o peso da censuraHá cinema. Essa responsabilidade será nossa, por
ecos de Visconti e de Oliveira, mas, sobretudo, há a preferirmos esquecer que também fomos um país de
marca pessoal de um cineasta que filma a História com lavagantes, engordando no medo até a hora do corte.
a consciência de que ela ainda lateja no presente. JOSÉ VIEIRA MENDES
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